Nações Unidas, 1/10/2013 – O longo debate sobre como regular o trabalho sexual chegou a um ponto de ruptura entre a Organização das Nações Unidas (ONU) e organizações que combatem o tráfico de pessoas. Estas acreditam que o fórum mundial deve rever sua posição, refletida em dois informes que promovem a despenalização de todos os aspectos da prostituição.
“Quando vimos os informes nos preocupamos”, pontuou Lauren Hersh, diretora do escritório nova-iorquino da organização Igualdade Já, que lidera a campanha pública lançada em setembro. “É atroz haver agências da ONU pedindo para manter os bordéis”, disse à IPS. Esta coalizão de 98 organizações pede à ONU que revise os informes, divulgados no ano passado, para que reflitam as experiências de sobreviventes da prostituição e para incluir uma gama mais ampla de pontos de vista sobre o impacto de legalizar a indústria do sexo.
Um deles, intitulado O Trabalho Sexual e a Lei na Ásia Pacífico, foi apoiado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/aids (Onusida). O segundo, O HIV e a Lei: Riscos, Direitos e Saúde, foi publicado pela Comissão Global sobre HIV e Direito do Pnud.
Ambos se centram em reduzir o vírus HIV e a doença que causa, a aids, protegendo simultaneamente os direitos dos que trabalham na prostituição. As sobreviventes do tráfico sexual dizem ser imperativo abordar a demanda que mantém vivo o negócio da prostituição, e que isso não é adequadamente abordado nos informes. A um pedido de declarações, um porta-voz do Pnud disse que os informes examinam os problemas do trabalho sexual pelas lentes específicas da epidemia de HIV, e que condenam fortemente o tráfico sexual.
“O Pnud defende e promove o respeito pelos direitos humanos para todos, especialmente os mais excluídos e marginalizados. O informe O Trabalho Sexual e a Lei… distingue claramente entre trabalho sexual adulto consensual e tráfico humano com fins de exploração sexual”, explicou o porta-voz. Fontes do UNFPA e da Onusida disseram à IPS que a declaração do Pnud reflete de modo preciso a posição de suas agências.
Os estudos também propõem a despenalização da indústria sexual como uma forma de promover a capacidade das pessoas que se prostituem de negociar o uso de preservativos. A Igualdade Já afirma que a questão econômica é que exerce pressão para manter relações sexuais sem preservativo, pois frequentemente os clientes oferecem mais dinheiro para que seja dessa forma. Se as mulheres são escravizadas ou controladas por um proxeneta, têm menos capacidade de insistir no uso de preservativos.
Em um comunicado, o Pnud declarou que a penalização do trabalho sexual aumenta a vulnerabilidade perante o HIV e limita o acesso aos preservativos e aos serviços de saúde sexual. Hersh acredita que “comumente são os proxenetas e os clientes que ditam o uso de preservativos, porque as mulheres podem conseguir mais dinheiro deixando de usá-los”, e ressaltou que a coalizão não tenta prejudicar os esforços da campanha contra o HIV/aids. A Igualdade Já tenta, há quase um ano, chegar à ONU por meio de canais internos, inclusive mediante o envio de uma carta assinada por mais de 80 organizações a Michel Sidibé, diretor-executivo da Onusida.
A prostituição é legal em muitos países, entre eles a Suíça. Há pouco foram instaladas em Zurique “cabines sexuais” para promover a segurança das prostitutas. Mas a situação continua sendo difícil para homens e mulheres em Estados que legalizam ou despenalizam a prostituição, segundo a Igualdade Já. “Um dos principais problemas é que os informes não incluíram consultas aos nossos sócios no terreno, particularmente as organizações lideradas por sobreviventes”, disse Hersh à IPS.
Stella Marr, diretora-executiva e cofundadora da organização internacional Sex Trafficking Survivors United, é uma sobrevivente da exploração sexual. Foi aliciada aos 20 anos e exerceu a prostituição durante uma década. “Se não abordarmos a demanda, sempre haverá tráfico”, advertiu Marr à IPS, acrescentando que os informes da ONU a “entristecem”.
Marr acredita que a melhor solução é o modelo nórdico, que penaliza a compra de sexo, mas despenaliza a prática da prostituição. Ela abandonou a prostituição quando um cliente lhe ofereceu ajuda e um lugar seguro para viver por dois anos. Não conhece ninguém mais que tenha conseguido isso. “O fato de eu ter saído não significa que fui forte. Tive sorte”, afirmou.
As vozes das sobreviventes da indústria do sexo não são ouvidas tão fortemente como as de quem continua na atividade, pela vergonha que as persegue, apontou Rachel Moran, integrante e fundadora da Survivors of Prostituiton-Abuse Calling for Ellightenment (Space) International, que foi prostituta dos 15 aos 22 anos.
Outra faceta dos informes que a Igualdade Já quer abordar é a definição de “tráfico” dada pela ONU. No Protocolo para Prevenir, Reprimir e Sancionar o Tráfico de Pessoas, Especialmente Mulheres e Crianças, das Nações Unidas, os Estados membros acordaram uma definição ampla, que reflete uma variedade de experiências vividas por sobreviventes da exploração sexual. Os informes da ONU do ano passado recomendam reduzir e reelaborar a definição, o que pode significar que muitas pessoas que foram submetidas já não sejam consideradas vítimas e que os traficantes não sejam responsabilizados.
“Entendo que é difícil. É preciso ter uma maneira de ajudar as pessoas a saírem dessa vida. Precisam ser reconhecidas como vítimas de tráfico. Não acreditamos que alguém a escolha”, ressaltou Marr. Contudo, a Igualdade Já é otimista em relação a próximos documentos, e dá como exemplo um estudo da Ásia Pacífico, recentemente lançado por Pnud, UNFPA e ONU Mulheres, segundo o qual a compra de sexo na região está fortemente associada às violações e à violência sexual generalizada contra as mulheres. Envolverde/IPS