Jerusalém, Israel, 29/8/2012 – Tropas israelenses perseguem um menino palestino em uma aldeia da Cisjordânia ocupada. “Está a dois metros de distância, e o chefe da companhia engatilha a arma e aponta para seu rosto… O menino se joga no chão chorando e implorando que não o matem”, afirma um testemunho militar. “É este o tipo de incidente cinza. Não tão terrível”, prossegue o depoimento de um sargento israelense. “Por que essas crianças realmente jogam pedras e isso é perigoso; não quer dizer que vamos feri-las de verdade. Suponho que para eles seja uma experiência muito amedrontadora, mas a situação é complicada”, acrescenta.
O ano é 2007. O relato do sargento é um dos 47 depoimentos coletados entre mais de 30 militares de Israel que prestaram serviço nos territórios palestinos ocupados entre 2005 e 2011. Intitulado Children and Youth – Soldiers’ Testimonies 2005-2011 (Crianças e Jovens – Testemunhos de Soldados 2005-2011), a publicação de 71 páginas acaba de ser apresentada pela organização não governamental Breaking the Silence (Rompendo o Silêncio). Este grupo, fundado em 2004 por veteranos israelenses que combateram na Segunda Intifada (levante palestino), ocorrida entre 2000 e 2005, dedica-se a documentar a vida cotidiana das zonas ocupadas e submetidas à militarização por meio das experiências que os próprios soldados têm em suas rondas diárias.
Com a intenção de sensibilizar os estudantes do curso secundário que no próximo ano se incorporarão ao exército, a organização pretende distribuir cópias do informe nas portas das escolas de Jerusalém e Tel Aviv. O ano escolar começou este mês. “A infância israelense goza da proteção da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, da qual este país é signatário, mas a infância palestina cresce sem essa proteção”, afirma o prefácio da publicação.
“Essa criança, especificamente, que realmente fica no chão implorando por sua vida, tem nove anos”, afirma o mesmo sargento em seu depoimento. “Penso em nossas crianças com nove anos (…) Uma criança deve implorar por sua vida? Se tem uma arma carregada apontada contra si, deve suplicar piedade? Mas, se não tivéssemos entrado na aldeia, no dia seguinte teriam atirado pedras e alguém poderia ser ferido ou morto”, justifica o sargento. “E pararam de atirar pedras?”, pergunta o entrevistador da ONG. “Não”, é a lacônica resposta.
Os fatos descritos neste livreto ocorreram em circunstâncias de tranquilidade, depois de ocorrida a Intifada. Mas, os testemunhos expõem que o racismo, o abuso, a violência, os assassinatos e os ferimentos de crianças e adolescentes palestinos, inclusive “não intencionais”, continuaram nas mesmas proporções. A ONG debateu as dúvidas quanto a expor ou não os estudantes israelenses à realidade descrita tão cruamente no informe, reconhece Avner Gvaryahu, ex-soldado transformado em ativista, cujo próprio testemunho consta da publicação de forma anônima, como todos os demais. “Se você tem idade suficiente para incorporar-se e carregar uma arma, tem a idade suficiente para saber o que realmente acontece nos territórios”, afirmou à IPS.
E as crianças palestinas têm, ou parecem ter, idade suficiente para serem presas à ponta de pistola, assediadas e humilhadas, golpeadas “até deixá-las em frangalhos”, e serem usadas como escudos humanos contra outros palestinos, isto apesar de uma decisão contrária de 2002 do Supremo Tribunal de Justiça de Israel. “No começo, a gente não se sente bem quando aponta a arma para um menino de cinco anos, e pensa que isso não é certo”, afirma outro soldado. “Mas isso muda quando se entra em um povoado e começam a chover pedras”, acrescenta.
Em outro incidente mencionado no informe, o comandante de uma companhia revista um menino de 12 anos, o obriga a ficar de joelhos, o ameaça aos gritos “feito louco”, para intimidar outros adolescentes que jogam pedras nas tropas. “Esse menino chorou e urinou nas calças (…) Parecia cena de um filme sobre o Vietnã”, descreve o soldado. “Eu sabia que era uma ameaça falsa; o homem é um oficial, afinal, e não creio que um oficial fizesse algo assim, mas…”. Finalmente, um ancião da aldeia convenceu o comandante a liberar o garoto. No dia seguinte, dois coquetéis Molotov foram lançados contra veículos que passavam pela cercania. “Portanto, não havíamos feito nosso trabalho. E alguém pergunta qual é esse trabalho”, conclui o soldado.
A maior parte da juventude israelense é educada em um sistema, tanto familiar quanto escolar, que elogia os valores morais intrínsecos do exército e raramente questiona suas operações de rotina ou a deterioração ética que esta causa nos soldados. A segurança nacional quase sempre é prioritária. As escolas exaltam o patriotismo, a coragem o sacrifício. Os ativistas insistem que uma atitude de questionamento moral poderia preparar os futuros convocados para que combatam a indiferença e a crueldade da parte de seus camaradas de armas.
O exército afirma que este informe é tendencioso, e argumenta que a ONG não consultou seu conteúdo com a instituição e, portanto, fica impossível uma investigação militar de potenciais abusos de direitos humanos ou mesmo de crimes. “A negativa da organização de entregar o conteúdo às autoridades indica seus verdadeiros motivos: gerar publicidade negativa contra o exército e seus efetivos”, disse um porta-voz militar. Os ativistas rechaçam a acusação e garantem que apoiam o exército, mas, ao mesmo tempo, compartilham a convicção de que os estudantes devem ser informados antes de entrar para o serviço militar.
Desde sua fundação, a Breaking the Silence reuniu testemunhos de mais de 800 militares. “Somos uma sociedade que se nutre de valores familiares e educativos, mas o exército trata os meninos palestinos de outra forma”, disse sua diretora-executiva, Dana Golan. “Cada depoimento apresenta histórias de maus-tratos infantis; cada história é um soco no estômago”, ressalta. A diretora sabe que alguns adolescentes vão ignorar o livreto. Mas, desde que leiam apenas uma história, o objetivo da ONG estará concretizado, disse à IPS.
O prefácio da publicação diz que “a intenção fundamental é criar um debate público sobre o custo moral que a sociedade israelense está pagando por uma realidade em que soldados jovens enfrentam dia a dia uma população civil e a dominam”. As discussões morais são muitas entre os israelenses. Há dez dias, no centro de Jerusalém, três adolescentes palestinos quase foram linchados por um grupo de jovens entre 13 e 19 anos. O incidente despertou inúmeras condenações e atos de contrição.
Contudo, ninguém abriga a ilusão de que esta mea culpa coletiva porá fim aos abusos da ocupação. Afinal, a maioria dos israelenses ainda está convencida de que têm ao seu lado a razão moral diante de seus vizinhos palestinos, mesmo quando, parafraseando o dito popular, suas boas intenções acabem cimentando o caminho para o inferno, e não um futuro de paz. Envolverde/IPS