Diante da pior crise humanitária do Século 21, “comunidade internacional” permanece passiva. Globalização ficará restrita às finanças e comércio?

[media-credit name=”AP” align=”alignleft” width=”260″][/media-credit]Aproximadamente, US$ 1,6 bilhão é o que o orçamento fiscal dos Estados Unidos destina, a cada 24 horas, a gastos militares. Também chega a US$ 1,6 bilhão o que Estado brasileiro oferece, todas as semanas, aos mercados financeiros, na forma de juros. Por fim, US$ 1,6 bilhão é o que a Organização das Nações (ONU) reivindica, numa única prestação, para acabar com o drama humanitário na Somália e outros países do “chifre da África” – onde 12 milhões de pessoas sofrem com a seca, veem-se obrigadas a deixar suas terras, vivem, vegetam ou morrem em campos de refugiados superlotados e desumanos. Mas os somalis, ao contrário da indústria de armamentos norte-americana ou do sistema financeiro brasileiro, não fazem lobby, nem têm voz na mídia. Por isso, o padrão de globalização sob o qual vivemos nega-lhes os recursos que não faltam nem ao complexo industrial-militar norte-americano, nem aos banqueiros do Brasil.

Distante dos jornais, a tragédia da Somália foi prevista, desde o final do ano passado, pela HelpAge e outras organizações internacionais. Sua causa aparente é a seca. Há três anos, chove muito pouco no chamado “chifre da África” – a região equatorial localizada no extremo Leste do continente, às margens do Mar Vermelho e do Oceano Índico, a um passo da Península Arábica. Etiópia, Djibouti e Eritreia também sofrem com a seca – mas a combalida Somália, onde desde 1991 alternam-se guerras civis e colapso completo do Estado, é a mais atingida.

Seus pouco menos de dez milhões de habitantes, tradicionalmente nômades e islâmicos em maioria, começaram a mudar para as áreas urbanas apenas no Século 20. Organizam-se em clãs patriarcais no país. Cultivam bananas, cana e milho. São pastores, criadores de camelos e pescadores.

Com a seca, o gado está morrendo e muitas famílias estão perdendo tudo. A falta de renda e a alta mundial dos preços da comida as deixam sem alternativas. Desesperadas, as famílias são obrigadas a fugir. Os 12 milhões que necessitam de ajuda incluem somalis e seus vizinhos. As taxas de subnutrição chegam a 30% em algumas áreas. Uma em cada três crianças sofre do mal.

Os refugiados que permanecem no país buscam comida e dinheiro. Dirigem-se aos campos de refugiados da capital, Mogadíscio. Muitos rumam para o Quênia e a Etiópia. Diariamente, três mil somalianos deixam seu país. Procuram Dolo Ado, na Etiópia, onde há 110 mil somalianos, e a cidade de Dadaab, no Quênia. Lá, já há três campos: Hagadera, Ifo e Dagahaley. Reúnem 380 mil pessoas – quatro vezes mais do que comportariam.

A precariedade é completa. Os recém-chegados ficam nos arredores e podem ter que esperar até 40 dias para receber os primeiros alimentos. A água é escassa: três a cinco litros diários por pessoa, contra um consumo de 150, na Europa. A assistência básica não é garantida pelas ONGs. Há graves casos de má nutrição, e diarreias e infecções respiratórias são constantes. As mortes ocorrem em geral por hipotermia e hipoglicemia. Numa noite chegou a haver 40 óbitos.

Do US$ 1,6 bilhão necessário, segundo as Nações Unidas, para enfrentar o drama, menos da metade foi reunida. Por meio da Usaid, os Estados Unidos doarão apenas 19 mil toneladas de comida, migalha equivalente a US$ 21 milhões. O governo brasileiro doou três vezes mais, mas ainda assim poquíssimo. Em 6 de julho, a Comissão Europeia enviou US$ 8 milhões para fundos de emergência.

A pior seca é a de ideias. A mídia, que se interessa crescentemente pelas imagens dos refugiados, não indaga por que se morre de fome no Século 21. Se a seca estava prevista, por que ninguém deflagrou uma campanha mundial de apoio aos somalis?

Também em relação às tragédias, parece haver dois pesos e duas medidas. Fukushima, no Japão, teve enorme visibilidade e despertou rapidamente campanhas internacionais. Muito mais graves, os desastre humanitários africanos permanecem esquecidos. É como se implicitamente fosse aceito que esta é a natureza da África.

Mais: Vale visitar a série de imagens do New York Times sobre a crise somali.

* Publicado origianlmente no site Outras Palavras.