Sombras e luzes dos Estados Unidos

Versonnex, França, junho/2011 – Cada vez que elogio algo, minha esposa japonesa me pergunta: “E o que tem de ruim?”. Quando critico algo, Fumiko diz: “Me diga algo de bom disso”. Este é o princípio taoísa do “ying-yang”: em todo o luminoso também há algo de escuro, e vice-versa. E no luminoso na escuridão há algo luminoso e algo escuro, e assim sucessivamente até o infinito.

A realidade é ambígua. Tomem por exemplo os Estados Unidos: a opinião majoritária parece ser que o Império norte-americano é escuro e que a República norte-americana é luminosa, um lugar para visitar, para viver. Uma medida para a maturidade é a de estabelecer com quantos níveis de análises alguém pode lidar. Considerar como “antiamericanismo” toda crítica contra o Império norte-americano revela um nível zero: os Estados Unidos são maravilhosos em todos os aspectos e toda crítica contra revela uma desordem mental, dizem os que neste país veem apenas o luminoso.

Porém, não só é possível como também é coerente, por exemplo, ser anti-hitlerista sem ser antialemão; anti-imperialista sem ser anti-russo; antiexpansionista sionista sem ser anti-semita; antimilitarismo japonês sem ser anti-japonês, e antifundamentalista e anti-imperialismo dos Estados Unidos sem ser antinorte-americano. As raízes das patologias podem ser encontradas na profunda cultura do normal, do bom, do positivo.

É tão insatisfatório ser apenas positivo sobre a República norte-americana quanto ser apenas crítico do Império norte-americano.

Os Estados Unidos têm ainda a maior economia do mundo, mas espera-se que logo sejam superados pela China, enquanto o “Sonho Americano” está ficando fora do alcance de muitos. Na área militar, onde foi largamente vitorioso, Washington sofreu uma primeira derrota na Guerra da Coreia. Politicamente, já não é a terra da democracia incorruptível.

Mas a cultura nos Estados Unidos exibe ainda uma incrível criatividade: nas artes clássicas, modernas e pós-modernas se romperam os limites e as barreiras. Sua cultura científica também é muito forte. Sua tecnologia é inovadora. E, o que é mais importante, o público está conectado a tudo isso: as artes e a ciência não são nichos separados da sociedade como fronteiras de separação de classes. Os Estados Unidos não só criaram uma nova cultura que tem êxito no mundo todo, como a fez para consumo das massas, não da classe alta – como anteriormente fizera com os automóveis e outras comodidades do Século 20. Em outras partes, a cultura é fundamentalmente para consumo das elites. Essas pautas estão se estendendo por todos os lados, em grande parte graças aos Estados Unidos.

O que continua sendo específico dos Estados Unidos é seu povo. Começando por um aspecto básico, pode-se dizer que com ninguém no mundo é tão fácil de se falar do que com um norte-americano. O diálogo é aberto, basicamente com a utilização do nome, não do sobrenome, com linguagem corporal e verbal encantadoras, e contato visual direto. Depois de 14 minutos entram na conversa questões pessoais que ficariam em segredo durante 14 anos, ou para sempre, em algumas outras culturas.

Os norte-americanos fazem nos sentirmos em casa, como um deles. São generosos e de visão ampla. As conversações não são unilaterais, eles se interessam em saber de onde alguém vem e o que acontece ali. E sobre os aspectos pessoais em um sentido positivo, o que tem a oferecer, o que pensa. Os Estados Unidos propõem às pessoas um Novo Começo, deixar o passado e o país de origem para trás, como nos tempos das migrações em massa.

Naturalmente, há a questão das classes, com grandes diferenças no poder econômico, no poder de vida e morte (frequentemente altamente ilegal) e no poder de decisão. Por isso, ocorre menos no comportamento diário. Os norte-americanos têm diferenças em matéria de moradia – que vão das mansões aos acampamentos de traillers – e em seus automóveis, mas normalmente se vestem igual, comem o mesmo (McDonald’s, Coca-Cola) e compartilham gostos e estilos de vida, como ir à igreja e lavar o carro aos domingos, o basquetebol, o amor pela natureza, pelos animais e pelos lugares nacionais. Falam o inglês mais ou menos da mesma maneira, até há pouco não era assim – os “afro-americanos” antigamente eram escravos, linchados e segregados.

Em todos esses sentidos, foi formada inicialmente uma sociedade sem classes por refugiados da Grã-Bretanha, essas ilhas do Mar do Norte de onde chegaram. Eles costumavam receber e dar acolhida aos forasteiros, a milhões e milhões, de todos os rincões do planeta. Com exceções, ao temerem os brancos, anglo-saxões e protestantes (WASPs) que aqueles a quem trataram pior, os povos originários, os afro-americanos, os hispanos (leia-se mexicanos) – poderiam algum dia tratá-los da mesma forma.

Os Estados Unidos são um lugar com facilidades para se viver onde sempre está acontecendo algo, com todos que sentem estar no centro dos acontecimentos. Um país com entusiasmo diante de uma longa lista de “apenas nos Estados Unidos”. Não surpreende que os norte-americanos saiam em defesa do país quando consideram que está ameaçado. Mas, se para isso se valem do segredo, da suspeita e de medidas de Estado policial, podem desvirtuar seus melhores valores. Esperemos que isto não ocorra. Envolverde/IPS

* Johan Galtung é reitor da Universidade de Estudos sobre a Paz Transcend e autor de The Fall of the US Empire – And Then What?