A cadeia de suprimentos (supply chain) é a espinha dorsal da sustentabilidade nas empresas. Não existe empresa sustentável do portão para dentro. Só existem empresas sustentáveis em cadeias sustentáveis.
O relatório de emissões de gases estufa ocupa hoje o centro de qualquer levantamento sério sobre a sustentabilidade corporativa. O mais importante não são as emissões de gases estufa da empresa. Elas tem que ser obviamente computadas e reduzidas, mas o ponto nevrálgico da dimensão climática da sustentabilidade são as emissões associadas ao ciclo de vida do produto. Elas começam desde a extração da matéria prima e vão até o descarte final. A porção crítica está no segmento do ciclo representada pela extração-manufatura-transporte-uso.
Sem chegar a todos os detalhes, tome-se o exemplo do automóvel. Como se trata de uma indústria com muitas ramificações ela é o nódulo central de várias cadeias de suprimento, todas elas contribuindo para o “teor de carbono” embutido no produto final: aço, plásticos, vidro, borracha, tintas, cabos, fios e por aí vai. A indústria tem uma logística interna e externa complexa e de alto carbono. O componente de uso também é decisivo: tipo de combustível e consumo do motor. Tudo faz parte.
Frequentemente, em palestras diretores de empresas me contam como estão reduzindo consumo de energia e papel em seus escritórios. Bacana. Mas o essencial é tomar a operação da empresa como um todo, inserida na cadeia produtiva e agir para buscar a sustentabilidade total, de todas as operações, inclusive, claro o back-office, os setores de serviços e apoio das empresas. Ou então apresentam com orgulho os programas de sustentabilidade da empresa, porém como uma unidade isolada das cadeias a que pertence. Bacana, mas insuficiente. O alvo é a cadeia, não só a empresa.
No Brasil, o desprezo pela cadeia produtiva nas políticas de sustentabilidade tem sido evidente. Recentemente, o Observatório Social fez um estudo sério sobre a cadeia da siderurgia de Carajás, no Pará. Nela, um dos principais insumos é o carvão vegetal ilegal, vindo de desmatamento. Não raro há flagrantes de trabalho escravo e trabalho de alto risco e degradante de menores nos fornos ilegais de carvão.
Quem fornece minério de ferro para essas siderúrgicas e o deixa se misturar a esse carvão de desmatamento e servidão está participando de uma cadeia suja. Quem compra o ferro gusa saído delas está tingindo seu aço com essas práticas ilegais. Não adianta depois dizer que suas próprias operações são limpas e sustentáveis. Fazem parte de cadeias que, além de insustentáveis, são intoleráveis.
A diretora de sustentabilidade do Instituto Aço Brasil, Marcia Yuan, reconheceu em entrevista à jornalista Míriam Leitão que, de fato, as empresas de aço têm que olhar toda a cadeia. É esse mesmo o caminho. O instituto, antigo Instituto Brasileiro de Siderurgia, mudou de nome para se diferenciar dessas siderúrgicas que, segundo ela não estão a ele filiadas. Ela disse, também, que o produto saído de Carajás é para exportação. Não entra nas cadeias locais.
O jornalista Marques Casara – @marquescasara – do Observatório Social, confirmou, na mesma entrevista, que a maior parte da produção é exportada. Mas quem compra, segundo ele, são empresas da indústria do aço, brasileiras ou que têm operações no Brasil, principalmente no EUA e na União Europeia. Ou seja, essas siderúrgicas são parte de cadeias globais de suprimentos, cujo aço vai para produtos que podem, eventualmente voltar ao mercado brasileiro. A cadeia terá que ser avaliada globalmente também. Mas não se pode esquecer o fato de que ela começa numa importante cadeia local, dominada pelas grandes mineradoras de minério de ferro. E faz parte, também, da cadeia doméstica de carvão mineral. O carvão mineral de desmatamento de mata nativa para carvão não é problema somente na Amazônia. É muito sério também no Pantanal e em Minas Gerais.
Argumento comum, principalmente na cadeia da carne, mas presente em outras também, é de que a empresa não tem como determinar a origem do que compra. Mas está disposta a não comprar de empresas que o governo autue por infrações ambientais ou trabalhistas. Uma empresa seriamente sustentável não pode admitir fazer parte de uma cadeia de suprimentos que não tenha rigoroso controle de origem de montante a jusante, em toda a sua extensão. Na verdade, ela precisa saber a origem e a forma pela qual são produzidos seus suprimentos, para poder garantir a qualidade de seus produtos. Que empresa séria inclui em sua produção insumos de origem e qualidade desconhecida?
A indústria eletrônica utiliza minerais especiais, como estanho, tungstênio e alguns outros, especialmente nas soldas, parte dos quais sai de minas controladas à força por grupos militares ou paramilitares no Congo e em Rwanda. São os minerais de sangue, ou de conflito. A indústria está fazendo um grande esforço e investimento para extirpá-los de suas cadeias. Recentemente pedi esclarecimentos ao ITRI, entidade da indústria do estanho que lidera esse movimento, e à ONG Global Witness, que tem investigado a cadeia de minerais de conflito do Congo, sobre essa nova etapa da ação para limpeza da cadeia de TIC e eletrônica em geral. Em breve escreverei mais sobre o tema.
É a indústria que tem a iniciativa. O governo do Congo tem sido pressionado por elas para adotar medidas de controle e comando para tirar de circulação esses minerais. Mas ninguém espera o governo flagrar os criminosos, que matam, estupram, sequestram e escravizam, para produzir esses minérios. Várias empresas já compram apenas minérios de origem controlada. A pressão sobre a empresa vem de consumidores e dos movimentos ambientalista e de direitos humanos.
Há duas maneiras de controlar a cadeia de suprimentos. A primeira, mais antiga e comum, é as empresas-chave da cadeia se recusarem a vender para produtores na ilegalidade ou comprar deles. Várias empresas internacionais que usam soja, carne e couro, fizeram isso com os produtores da Amazônia brasileira. Mas esses produtores, como as siderúrgicas de Carajás, têm encontrado vias de escape. No caso do gusa, tem sido a exportação, até mesmo para mercados de primeira linha. No caso da soja, da carne e do couro, os mercados de primeira linha estão cada vez mais fechados a esses produtos, quando apresentados sem rastreamento adequado de origem. O escape se dá, então, para mercados de segunda e terceira, ou grandes mercados desinteressados do componente socio-ambiental do produto, como a China.
A outra maneira de controlar a cadeia produtiva, mais nova e mais inteligente, é estabelecer parcerias para inovação, produtividade e sustentabilidade, em toda a cadeia, com ganhos gerais para todos.
O controle não é fácil. O cálculo de emissões de carbono equivalente é complexo. Mas é um investimento com retorno garantido. Como ele reduz custos e aumenta as margens de lucro, olhado em perspectiva, o investimento em sustentabilidade é grátis. Ele mais que se paga.
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** Publicado originalmente no site Ecopolítica.