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Temporada árabe de rebeliões apenas começa

Ex-presidente de Portugal Jorge Sampaio, da Aliança das Civilizações. Foto: Mario Queiroz/IPS

Lisboa, Portugal, 5/12/2012 – O denominador comum ao terminar ontem a reunião de dois dias do Fórum de Lisboa, com a presença de destacadas personalidades internacionais, é que o processo democrático nas rebeliões árabes da região do Mediterrâneo está longe de ter acabado. Por esse motivo, a convocação da décima-nona edição do fórum, uma iniciativa do Centro Norte-Sul do Conselho de Europa (CNS-CE) e da Aliança de Civilizações, mudou o termo “primavera” para “temporada” árabe.

Assim, o encontro “Temporada árabes: das mudanças aos desafios”, contou com as presenças de representantes de governos e instituições de quase 40 países e importantes organizações internacionais, encabeçadas pela Organização das Nações Unidas (ONU). “Desta vez as presenças no Fórum de Lisboa demonstram que é significativo, considerando todos os países que estão envolvidos”, disse à IPS o ex-presidente de Portugal, Jorge Sampaio, alto representante do secretariado-geral da ONU para a Aliança das Civilizações (AC).

Sampaio afirmou que a grande presença de europeus demonstra o interesse para avançar nos processos de democratização do sul e oriente da região do Mar Mediterrâneo. “Contudo, não devemos nem queremos impor modelos. Podemos ajudar a levar as coisas a um contexto de referência democrática, mas todos esses países têm sua evolução própria”, afirmou.

O grande desafio da Europa é “entender como apoiar os Estados que tentam definir sua identidade e o papel da religião na sociedade”, recordando que a origem dos levantes “não foi islâmica, mas econômica, social, antirrepressiva e pela liberdade. Esta é a parte objetiva da primavera do Mediterrâneo”, acrescentou o ex-presidente.

“No Fórum de Lisboa temos um espaço de debate democrático e não de imposição de sistemas”, disse Sampaio, que preside a AC desde sua criação em 2005, nomeado pelo ex-secretário-geral Kofi Annan, com os patrocínios do então primeiro-ministro espanhol José Luis Rodríguez Zapatero, e do primeiro-ministro turco Recep Tayyip Erdogan. A ativa ação dos delegados europeus no Fórum de Lisboa foi explicada à IPS por Luis Filipe de Castro Mendes, representante do Comitê de Ministros do Conselho de Europa.

“A missão básica do CE é promover a democracia, os direitos humanos e o império da lei em nosso continente, mas estamos conscientes de que a interdependência do mundo atual se traduz na necessidade de dar atenção especial ao que ocorre fora das fronteiras nacionais, especialmente em nossos vizinhos imediatos”, destacou Mendes.

Do encontro participaram representantes de governos ou organizações de países de tradição islâmica como Arábia Saudita, Argélia, Egito, Jordânia, Kuwait, Líbano, Líbia, Marrocos, Palestina, Paquistão, Catar, Tunísia e Turquia. Da Europa e de regiões próximas havia delegados de Eslováquia, Suíça, Portugal, Malta, Itália, Vaticano, Grécia, Rússia, Espanha, Sérvia, Israel, Georgia, Polônia, Hungria, República Checa, Luxemburgo e Croácia.

A América se fez presente com Argentina, Estados Unidos, Canadá e Venezuela, e os presentes se completaram com representantes de Cabo Verde, Senegal e Coreia do Sul. Também foram parte do encontro delegados da ONU e de várias de suas agências, da Liga Árabe, da União Europeia, do Conselho de Europa, da Organização Internacional das Migrações, da Federação Internacional para os Direitos Humanos, da Aliança das Mulheres Árabes e do Parlamento Europeu.

É “uma vergonha para nossa região não ter conseguido acabar com a guerra civil sangrenta e destrutiva na Síria, conflito que é alarmante pelo aumento de represálias violentas, pelas mortes e pelo crescente fundamentalismo sectário na sociedade síria”, disse Sampaio. E advertiu que, além do apoio e da influência de grupos externos, o conflito da Síria “tem a capacidade de inflamar as tensões nos países vizinhos e mudar o equilíbrio de poder na região Euro-Mediterrânea”.

Na Síria também há um problema de perseguição religiosa. Isto se enquadraria na ação da Aliança de Civilizações?, perguntou Sampaio à IPS. E ele mesmo respondeu: “A Aliança não tem nenhuma possibilidade de intervenção no conflito. Embora seja necessário apontar a gravidade e a importância do problema, é evidente que se deve ter em conta que não temos na manga nenhum tipo de solução”.

Sampaio reconheceu que “é uma questão muito séria e que não se pode dizer que a Aliança não possa um dia ter um papel de importância, mas neste momento é totalmente inviável”. Acrescentou que, “se nem a própria ONU consegue um diálogo para a paz, a Aliança não pode ter essa pretensão, apesar de ter a vontade de cooperar da melhor maneira”.

Sobre o conflito palestino-israelense, o ex-presidente disse que a solução de dois Estados “corre um grave risco em um momento em que os novos assentamentos anunciados ameaçam separar Jerusalém oriental do resto da Cisjordânia”. É necessário que as duas partes voltem às negociações, em um “esforço coletivo após a decisão histórica” da Assembleia Geral da ONU, que aponta o “direito legítimo dos palestinos a um Estado independente, soberano, democrático e viável”, afirmou.

O Fórum de Lisboa também dedicou boa parte de seus debates à questão da integração multicultural no espaço europeu. A IPS conversou com a jordaniana Suhair El Qarra, de pai palestino e mãe italiana, pesquisadora da organização não governamental Paz Política e Segurança. “Vivo na Itália, país multiétnico, mas não necessariamente interético onde se deve trabalhar muito para conseguir certa empatia com o próximo, algo que pode ser considerado um problema comum na Europa”, afirmou.

Solicitada a esclarecer o tema, Suhair disse que “a interculturalidade é um conceito que deve partir de baixo, algo que é comum a toda a Europa, e creio que até em todo o mundo, é um conceito transversal. Quanto mais um europeu conhece o mundo, mais fácil é que nasça uma empatia com “o outro” e se convença de que o mundo não é algo limitado pelas opiniões e descrições nacionais”.

No caso particular dos italianos, “é preciso explicar que o mundo não é feito de convicções de cada país, mas transversalmente intercultural. E com a globalização e a consequente proliferação das redes sociais, existe uma possibilidade muito maior de compreender estes fenômenos em nível da sociedade civil”. Envolverde/IPS