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Terapia celular avança em Cuba apesar da crise

Enzo Barriga se exercita em sua casa, em Havana, como parte da terapia celular contra a distrofia muscular que sofre. Foto: Jorge Luis Baños/IPS
Enzo Barriga se exercita em sua casa, em Havana, como parte da terapia celular contra a distrofia muscular que sofre. Foto: Jorge Luis Baños/IPS

 

Havana, Cuba, 2/12/2013 – “Meu filho ganhou independência. Pode tomar banho e se vestir sozinho. Faz abdominais. Sobe e desce alguns degraus da escada”, contou, animada, Cecilia Hernández, mãe de um menino de 12 anos que sofre de distrofia muscular de Duchenne e que recebeu um autotransplante de células-mãe adultas, dentro de um teste clínico. Enzo Barriga foi o primeiro de nove pacientes infantis a participar do estudo clínico que poderá colocar Cuba entre os primeiros países a encontrarem uma terapia efetiva para esta doença incurável e progressiva.

É a experiência mais recente e divulgada das exitosas pesquisas com células-mãe adultas desenvolvidas em Cuba, que colocam à prova a capacidade científica de um país de escassos recursos e com uma profunda e crônica crise econômica. Em Cuba os serviços de saúde, inclusive os mais avançados, são gratuitos para seus quase 11,2 milhões de habitantes. Dentro das reformas do modelo socialista que rege no país, o setor sanitário foi reorganizado em 2010, para melhorar o atendimento e continuar com os avanços médicos que representam importante ativo no desenvolvimento cubano.

Assim, o Estado dedica à saúde mais de 15% do produto interno bruto e mantém o apoio a estudos como os de terapia celular, que ainda estão em fase de teste clínico, envolvem cerca de 20 hospitais e contabilizam quase cinco mil casos em menos de uma década. No futuro, a terapia celular também poderá propiciar ao país importantes recursos. Como parte das reformas econômicas iniciadas em 2010, a cooperação médica está deixando de ser gratuita “onde é possível”, e, por outro lado, se tenta fortalecer a Comercialização de Serviços Médicos Cubanos, que oferece a pacientes estrangeiros atendimento pago em Cuba e no exterior, para aumentar a renda e tornar sustentáveis os serviços que presta gratuitamente à população cubana.

Economistas ouvidos pela IPS afirmam que, em 2012, os recursos obtidos nesse item giraram em trono de US$ 6 bilhões, enquanto a indústria biotecnológica e farmacêutica espera elevar para US$ 5 bilhões as exportações de vacinas, medicamentos e equipamentos médicos nos próximos cinco anos. Os médicos que atendem Barriga, liderados pelo pediatra Omar López, buscam na medicina celular a terapia para uma doença genética causada pela escassez de uma proteína denominada distrofina, responsável pelo bom funcionamento da contração muscular.

Costuma aparecer em meninos entre dois e seis anos e faz os músculos enfraquecerem até que o paciente perde a capacidade de caminhar e posteriormente apresenta problemas respiratórios e cardíacos. A portadora do gene anômalo é a mulher, que não sofre a doença, mas a transmite aos filhos homens. Estima-se que no mundo a enfermidade afete entre 20 e 30 meninos em cada cem nascidos vivos do sexo masculino. A expectativa de vida é de 20 a 25 anos.

“Vamos com muita cautela. Começamos com Enzo há pouco mais de um ano como terapia compassiva. O garoto ganhou em funções motora e a deterioração parou. Ampliamos o estudo a outros oito meninos, com os quais houve uma melhora ainda mais evidente. Não é a cura, mas aumenta a qualidade de vida”, explicou López à IPS. A seu ver, os promissores resultados poderiam ser explicados pelo fato de, ao terem a capacidade de regenerar tecidos danificados por doenças, traumas ou envelhecimento, as células-mãe conseguem manter estável por um determinado tempo a força muscular perdida. “No futuro, não sabemos o que vai acontecer, nem se aumentará a expectativa de vida”, acrescentou.

Esse tipo de tratamento foi introduzido em Cuba em 2004, disse à IPS o hematologista Porfirio Hernández, coordenador nacional do grupo cubano de Medicina Regenerativa e Terapia Celular. Os testes são feitos fundamentalmente em tratamentos de doenças angiológicas, traumáticas e ortopédicas e em alterações da gengiva. “Funciona com bons resultados em pacientes com fraturas ósseas complexas, transtornos isquêmicos dos membros inferiores e periodontia”, detalhou.

Hernández ressaltou que em nenhum caso foi utilizada célula embrionária, por razões científicas e de outra índole, incluídas as econômicas. “Além da oposição de ordem ética, religiosa, moral e política, deve-se considerar os riscos, porque 1% dessas células testadas em animais produzem tumores”, explicou. As células-mãe adultas são retiradas da medula óssea do próprio paciente, no qual, para que haja um maior número na periferia, se inocula previamente um fator estimulador de colônias de granulócitos. Esse produto, muito caro internacionalmente, é produzido em Cuba com dois nomes, Leucocim e Hebervital, “para sorte de todos”, disse o especialista.

Na especialidade de periodontologia os avanços parecem ser promissores. A odontologista Amparo Pérez Borrego garante que, nos últimos cinco anos, 70 pacientes de periodontia crônica receberam tratamento celular e em todos os casos houve resultados satisfatórios. “Sabemos que esta terapia chegará algum dia para ser a solução para esses problemas. Estamos no caminho”, indicou Pérez à IPS. A periodontia é uma enfermidade inflamatória que afeta os tecidos de proteção e sustentação dos dentes. “É um grave problema de saúde e a segunda causa de mortalidade dentária”, afirmou.

As pioneiras no uso de células-mãe são a angiologia e a ortopedia, segundo Aymara Baganet, dedicada à segunda especialidade e à traumatologia. De 21 pacientes com mais de três anos de tratamento por afecções do sistema osteoarticular, apenas três exigiram o uso de prótese no joelho. “Nos 18 restantes, a evolução é satisfatória, desapareceu a dor, há boa mobilidade de articulação, trabalham e levam uma vida normal”, contou. Também houve promissores resultados no tratamento de aproximadamente 300 pacientes que sofriam de artrose no joelho.

Esses progressos são animadores para um país com alto nível de envelhecimento. Baganet pensa que na ortopedia falta menos do que em outras áreas para passar ao sistema assistencial a aplicação de células-mãe adultas no tratamento de doenças comuns em idosos. Em 2010, a população com 60 anos ou mais passou para 17,8% dos habitantes da ilha. E para 2025 essa faixa etária aumentará até 26% do total, enquanto a idade média passará de 38 para 44 anos, com elevado crescimento absoluto do número de idosos na faixa dos 80 anos.

Outro país latino-americano que apresenta importantes avanços na terapia celular é o Brasil, com o qual Cuba mantém relações de colaboração nesse e em outros campos da área sanitária. Segundo Hernández, o intercâmbio científico nessa esfera também existe com Japão, alguns países da Europa e outros da América Latina. Envolverde/IPS