TERRAMÉRICA - “Abandonados como cães de rua”

Lacunas e arbitrariedades continuam condenando centenas de milhares de vítimas do terremoto no Haiti a sofrerem condições sub-humanas, conforme mostra esta pesquisa à qual o Terramérica teve acesso exclusivo.

O carpinteiro Sam Brignol, que vive no campo de Léogâne, mostra aos jornalistas uma latrina suja e insegura. Foto: Cortesia Haiti Grassroots Watch

Petit-Goâve, Haiti, 29 de agosto de 2011 (Terramérica/Haiti Grassroots Watch).- Oitenta mil minúsculas moradias estão espalhadas nos arredores desta cidade costeira do Haiti, que fica a oeste do epicentro do terremoto que em 12 de janeiro de 2010 matou cerca de 200 mil pessoas e deixou mais de um milhão de desabrigados. Estas minicasas de um único ambiente, chamadas T-Shelters (abreviação de abrigos transitórios, em inglês) foram criadas para durar entre três e cinco anos, mas custaram mais de US$ 200 milhões e hoje abrigam 80 mil famílias cujas casas estavam entre as 171.584 danificadas ou destruídas pelo terremoto, segundo dados oficiais.

A Comissão Interina de Recuperação do Haiti, liderada pelo ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton (1993-2001), aprovou projetos no valor de US$ 254,5 milhões para reparar, ampliar ou construir até 41.759 unidades habitacionais. Outros planos incluem mais cerca de 20 mil moradias. O novo governo haitiano, encabeçado pelo cantor Joseph Michel Martelly, organizou, de 18 a 24 de julho, a Semana da Reconstrução, na qual, entre outras atividades, inaugurou, junto com Clinton, uma “exposição de moradias” com mais de 60 modelos de casas e um novo plano hipotecário chamado “Kay Pa M” (minha casa, na língua creole).

Toda esta atividade significa que a reconstrução está em andamento? Em breve se mudarão para moradias seguras as 634 mil pessoas que ainda vivem em 1.001 acampamentos e outras dezenas de milhares que habitam estruturas frágeis à beira do desabamento? A haitiana Louise Delva, mãe de cinco filhos, vive no acampamento Regal de Petit-Goâve, 68 quilômetros a sudoeste de Porto Príncipe. Ela não sabe de nenhum plano destinado a ela ou a dezenas de milhares de refugiados como ela.

“Fomos abandonados”, disse Delva com desdém, enquanto guiava um grupo de repórteres de rádio da Haiti Grassroots Watch (HGW) por sua comunidade. “Estas são as sórdidas condições em que vivemos”, disse, apontando para uma escura e fétida tenda abarrotada de coisas, dois colchões e um facão. “Quando chove estamos em perigo. Olhem o quanto estamos perto do leito do rio”, acrescentou Delva, apontando para um terreno quase seco que os moradores do acampamento usam como latrina. Enquanto ela falava, duas crianças faziam suas necessidades no rio.

Louise Delva, moradora no acampamento de Petit-Goâve, aponta para o leito do rio, que ela e outras moradoras usam como latrina a céu aberto. Foto: Cortesia Haiti Grassroots Watch

No final deste mês, o furacão Irene não passou pela região do Haiti onde Delva e outras centenas de milhares de pessoas moram em acampamentos improvisados. Contudo, isto não significa que as famílias não corram risco de um próximo furacão e do cólera que continua golpeando o Haiti. A maior parte do país e todos os 1.001 acampamentos carecem de instalações sanitárias adequadas. “No começo de junho, tivemos 21 casos de cólera aqui”, disse aos jornalistas da HGW o presidente do comitê do acampamento Regal, Guyvlard Bazile.

Agências ausentes

Embora já não apareça nas manchetes dos jornais, o cólera continua atacando. Por dia, são hospitalizadas mais de 300 pessoas. No dia 8, os contagiados somavam 426.285 e, pelo menos, 6.169 morreram. Porém, no começo deste verão boreal as agências humanitárias que limpavam as latrinas e forneciam água e cuidados médicos se retiraram da maioria dos acampamentos, alegando ter ficado sem dinheiro.

De fato, já em março o Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários das Nações Unidas (Ocha) alertava que “a maior parte do financiamento para apoiar as ações de saneamento, distribuição de água e administração dos acampamentos terá terminado em junho de 2011”. “Acabando as ações de saneamento, aumentam a defecação ao ar livre, a disposição incontrolada de fezes, a contaminação do cólera e a insegurança, em especial para as mulheres que buscam um lugar privado para fazerem suas necessidades”, acrescentou a Ocha.

Toda a evidência reunida pela HGW e outros jornalistas e ativistas em vários acampamentos indicam, de fato, que a “defecação” e os “excrementos” aumentaram, apesar de, segundo os próprios números da Ocha, os programas de assistência em água e saneamento das agências humanitárias já terem recebido mais de US$ 40 milhões para 2011. Bazile, o coordenador do acampamento Regal, disse não entender para onde foram o dinheiro e as agências.

Há uma que permanece em Regal, a International Emergency and Development Aid (Ajuda ao Desenvolvimento e à Emergência Internacional – Ieda), que é a “administradora do acampamento”. Entretanto, com apenas duas latrinas para centenas de pessoas, um único cano com saída de água e nenhuma clínica, fica difícil encontrar evidências dessa administração. “Venham ver se há mulheres grávidas com dificuldades, quanta gente está doente e quem precisa ir ao hospital”, alertou Bazile.

Em um e-mail à HGW, a Organização Internacional das Migrações (OIM), que também supervisiona todos os acampamentos, confirmou que a Ieda tem “um administrador cuja responsabilidade é estar todos os dias no acampamento, reunir as informações do comitê e da comunidade e compartilhá-las com os diferentes atores”. A OIM não tinha números sobre o orçamento manejado pela Ieda, mas registros públicos indicam que neste ano a própria OIM recebeu mais de US$ 20 milhões para seu trabalho nos acampamentos e com suas populações.

Bazile afirmou que a OIM também está “presente” em Regal. “Às vezes, eles também nos chamam. Por exemplo, depois de uma tempestade nos perguntam como estão as coisas, se a chuva causou algum dano. Fazem um monte de perguntas, mas não fazem mais nada”, acrescentou.

Acampamentos de horror

Há centenas de campos como Regal no Haiti, e todos carecem de saneamento e água suficiente. Um estudo feito em março pelas agências humanitárias concluiu que:

• Apenas 48% dos moradores tinham acesso diário e adequado a água potável;

• Da água distribuída, 61% tinha a proporção correta de cloro para evitar o contágio do cólera;

• Havia uma média de 112 pessoas por latrina;

• Apenas 18% dos acampamentos tinham instalações para se lavar as mãos;

• Somente 29% dos campos tinham um sistema de coleta e disposição do lixo sólido;

• Os números de Petit-Goâve são piores: 141 pessoas por latrina, 185 por ducha.

“Em lugar de melhorar, ou ficar como está, creio que vamos para trás”, destacou Baziel. A maioria das 634 mil pessoas que vivem nos acampamentos não está incluída nos planos de reconstrução, que abrangem 68.025 moradias novas ou refeitas, porque antes do terremoto eram inquilinos e estes não fazem parte do programa Marco para o Regresso aos Bairros e à Reconstrução de Moradias.

A pesquisa da HGW também determinou que:

• Mesmo fazendo a reparação ou construção de todas as 68.025 unidades, estas atenderão apenas 22% das 304.020 famílias que foram recenseadas nos acampamentos no ano passado. Hoje há menos gente neles por vários motivos: desde a retirada de mais de 50 mil pessoas por supostos proprietários ou autoridades municipais até o regresso de milhares de famílias para moradias em ruínas;

• Ao menos 5.400 dessas moradias estão, de fato, previstas para o Departamento do Norte, distante do epicentro do terremoto e de suas vítimas, mas muito perto do local onde empresas estrangeiras planejam construir um parque industrial com fábricas de montagem;

• As 116 mil T-Shelters foram entregues a muitas famílias necessitadas, mas a maioria era proprietária de uma casa ou de um terreno antes do terremoto. Mais da metade das 304.020 famílias recenseadas no ano passado (mais de 173 mil) não possuía uma casa e nem terra, e está excluída de todos os planos;

• Há muitos casos documentados de corrupção com as T-Shelters, basicamente com a demolição das casas e a venda de seus materiais, como madeira.

Ainda não existe uma instituição de referência, nacional ou internacional, que conduza a reconstrução de moradias, apesar de parecer que, finalmente, se avança nesse aspecto, pois seria dotada de recursos e poderes a Enterprise Publique de Promotion de Logements Sociaux (Empresa Pública de Promoção da Moradia Social). Delva, que não recebeu uma T-Shelter e cuja tenda de lona apodrecida deixa passar a chuva, se rendeu. “Dizem que temos líderes? Não há líderes neste país. Nos abandonaram, como cães de rua”, afirmou.

* Este artigo resume uma pesquisa em quatro partes, incluindo vídeos, publicada em francês e inglês no site da Haiti Grassroots Watch (http://www.haitigrassrootswatch.org/), uma iniciativa da AlterPresse, da Sociedade de Animação da Comunicação Social (Sacs), da Rede de Mulheres Radialistas Comunitárias (Refraka) e emissoras da Associação de Mídia Comunitária do Haiti.

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Haiti Grassroots Watch, em espanhol, francês e inglês

Comissão Interina de Recuperação do Haiti, em francês e inglês

Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários das Nações Unidas, em inglês

International Emergency and Development Aid, em inglês

Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.