TERRAMÉRICA - Febre do ouro no Haiti

Um mineiro da localidade de Lakwèv mostra pedaços de ouro. As pessoas dessa região cavam túneis e separam o ouro que depois vendem a comerciantes de cidades próximas ou da vizinha República Dominicana pela metade de seu preço de mercado. Foto: Ben Depp – Cortesia HGW

Concessões feitas a portas fechadas, acordos secretos e ilegais e trabalhos de prospecção sem fiscalização pública e escasso controle governamental marcam a nova febre do ouro no Haiti.

Porto Príncipe, Haiti, 2 de julho de 2012 (Haiti Grassroots Watch/Terramérica).- Aproximadamente US$ 20 bilhões em ouro, cobre e prata repousam nas colinas do Haiti, o país mais pobre do continente. O tesouro vale a pena para investidores da América do Norte que já gastaram US$ 30 milhões em prospecção. Uma pesquisa de dez meses sobre e febre do ouro neste país caribenho, que o Terramérica publica com exclusividade, encontrou acordos clandestinos, atores com fins divergentes, memorandos de legalidade questionável e regras de jogo que não poderiam ser menos equitativas.

Segundo a lei, as riquezas do subsolo pertencem “à nação haitiana”. Porém, o país nada sabe sobre as perfurações realizadas no norte de seu território. “Os minerais pertencem ao domínio público do Estado”, indicou ao Terramérica o respeitado geólogo Dieuseul Anglade, que esteve à frente da agência estatal de mineração durante a maior parte dos últimos 20 anos. Um mês após dar estas declarações, foi destituído pelo novo primeiro-ministro, Laurent Lamothe. Se não forem redigidas leis mais firmes e contratos melhores, é preferível “deixar os minerais no subsolo”, afirmou Anglade.

Agora, a empresa canadense Eurasian Minerals e suas subsidiárias locais estão prontas para extrair ouro do próprio solo onde Cristóvão Colombo e os espanhóis obrigavam os indígenas haitianos a escavarem há mais de 500 anos. Quatro décadas depois do desembarque de Colombo, em 1492, o duro trabalho nas minas, as matanças e o contágio de doenças desconhecidas reduziram a população nativa de 300 mil para apenas 600 pessoas.

A Eurasian chegou a essas colinas há pouco e começou a comprar licenças e concessões. Até agora, possui 53 e controla os direitos de exploração ou prospecção de quase um terço do norte do Haiti. A empresa, que já analisou cerca de 44 mil amostras, está associada com a número dois do negócio de ouro no mundo, a Newmont Mining Corporation, com sede nos Estados Unidos.

Outra firma canadense, a Majescor, uma norte-americana menor, a VCS Mining, e suas subsidiárias, têm licenças para uma área de 750 quilômetros quadrados. No total, cerca de 15% do território haitiano está entregue em concessão a empresas mineradoras da América do Norte e suas sócias. Como afirmou a filial haitiana da Majescor em uma apresentação corporativa, o Haiti “é o gigante adormecido do Caribe”.

O gigante dormiu nas últimas três décadas porque era muito caro explorar minerais neste país, sacudido por violentos golpes de Estado e com uma importante resistência social à mineração. Contudo, o preço do ouro se mantém estável por mais de um ano, chegando a US$ 1,5 mil a onça, e no Haiti estão presentes dez mil capacetes azuis (soldados da ONU), capazes de garantir uma segurança mínima para as empresas. Além disso, na vizinha República Dominicana se começa a explorar uma jazida qualificada como a maior do continente, com quase 24 milhões de onças, e que está no mesmo cinturão geológico.

Em uma nação onde o desemprego chega a 70%, metade da população vive com menos de US$ 1 por dia e a maior parte do orçamento do Estado é coberta com ajuda estrangeira, a ideia de um tesouro enterrado é como a lenda do Eldorado. Porém, nem todos os haitianos se mostram tão entusiasmados. Tampouco está claro se os eventuais ganhos vão beneficiar a população. As empresas mineradoras estimam que nas montanhas do Haiti exista o equivalente a US$ 20 bilhões em ouro, boa parte “invisível”, dividido em partículas diminutas na rocha e no solo. A extração só é possível com minas a céu aberto. E esta mineração pode envenenar as fontes de água e degradar o meio ambiente.

A Newmont sabe de minas a céu aberto. Na década de 1960 iniciou este tipo de exploração no Estado norte-americano de Nevada, que depois repetiu em Gana, Nova Zelândia, Indonésia e outros países. No Peru, administra uma das maiores do mundo: a de Yanacocha, de 251 quilômetros quadrados. No entanto, mesmo com toda essa experiência, seus antecedentes não estão livres de falhas. No Peru, organizações de agricultores afirmam que seu fornecimento de água foi contaminado com cianureto, e em 2000 o vazamento de um carregamento de mercúrio da Newmont fez com que dezenas de pessoas contraíssem doenças mortais.

Em Gana, a Newmont opera uma jazida na região conhecida como “celeiro” do país. Suas operações em Ahafo do Sul forçaram o deslocamento de 9,5 mil pessoas, quase todas dedicadas à agricultura de subsistência, segundo o Environmental News Service. Também ali a água foi contaminada pelo menos uma vez, segundo admitiu a companhia, que em 2010 aceitou pagar indenizações no valor de US$ 5 milhões por um vazamento de cianureto em 2009. “Podemos garantir que a Newmont está comprometida com fortes práticas ambientais, sociais e éticas”, disse Diane Reberger, funcionária da empresa, em um e-mail de 25 de maio respondendo perguntas para esta investigação.

A fragilidade ambiental do Haiti também conta, segundo o ex-ministro do Meio Ambiente, Yves-André Wainright. De uma cobertura florestal que compreendia 90% do território em 1492, o país conserva apenas 1,5%. Wainright, agrônomo de formação, afirmou que algumas das áreas entregues em concessão são “montanhas úmidas”, que têm “um importante papel para a conservação da biodiversidade e precisam ser protegidas”, e também são lar de dezenas de milhares de famílias de agricultores.

“Quando penso na mineração, não estou certa de que seja algo bom”, declarou para esta pesquisa a agricultora Elsie Florestan, de 41 anos, ativista do movimento Tèt Kole Ti Peyizan (que em língua creole significa pequenos camponeses trabalhando juntos). Ela e sua família vivem e cultivam em uma zona onde a Eurasian e a Newmont recentemente terminaram testes exploratórios. “Dizem que a empresa usará a água de nosso rio por 20 anos, que ficará contaminada e não poderemos permanecer aqui. Se não nos organizarmos e fizermos barulho, nada de bom vai nos acontecer”, acrescentou.

O Haiti não assinou a Convenção sobre Segurança e Saúde nas Minas, nem a Iniciativa sobre Transparência nas Indústrias Extrativas, instrumentos que oferecem algum grau de proteção. Além disso, está classificado como um dos países mais corruptos do mundo. Até agora, foram concedidas concessões a portas fechadas, selados acordos secretos e realizadas tarefas de prospecção sem fiscalização pública e com pouco controle governamental, admitiu a própria agência estatal de mineração.

“O governo não nos dá os meios para fiscalizar as empresas”, argumentou Anglade quando ainda dirigia a entidade. Além disso, o Haiti cobra uma das menores taxas do continente: apenas 2,5% do valor de cada onça extraída. “É muito pouco. Abaixo de 5% é ridículo para um país como este”, disse a especialista em mineração Claire Kumar, da organização humanitária Christian Aid.

As mineradoras também têm amigos em postos estratégicos. O ex-ministro das Finanças Ronald Baudin, que precisou sentar-se à mesa de negociação com a Newmont em 2010 e 2011, passou para o outro lado e agora é consultor para a sociedade Newmont-Eurasian. Perguntado pelo Terramérica sobre o evidente conflito de interesses, respondeu: “Preciso comer, certo?”.

A lei atual estipula que não pode ser feita nenhuma perfuração antes de ser assinado um contrato de mineração. O principal papel de Baudin foi facilitar um Memorando de Entendimento que permitiu à empresa contornar a legislação e perfurar de todas as maneiras. Segundo Baudin, o Memorando é uma “exoneração” das disposições da lei. Juristas consultados confirmaram o evidente: a única forma de evitar burlar uma lei é mediante uma reforma legal aprovada no parlamento.

Anglade, então titular da agência estatal de mineração, negou-se a assinar o Memorando argumentando que “era ilegal e contrário aos interesses do Haiti”. Dois meses depois, foi demitido. De todo modo, no final de março o Memorando foi assinado pelos então ministros das Finanças e de Obras Públicas. E, no dia 23 de abril, a Eurasian informou seus acionistas que tinha permissão para “perfurar em certos projetos” específicos, e que já fazia isso.

* Este artigo resume uma investigação da Haiti Grassroots Watch (HGW), intitulada Corrida do ouro no Haiti! Quem vai ficar rico?, que pode ser lida na íntegra em http://www.ayitikaleje.org/18_01_ENG. A HGW é uma iniciativa das instituições AlterPresse, Sociedade de Animação da Comunicação Social (Saks), Rede de Mulheres Radialistas Comunitárias (Refraka) e emissoras da Associação de Mídia Comunitária do Haiti, bem como de estudantes do Laboratório de Jornalismo da Universidade do Estado do Haiti. O semanário Haïti Libertè associou-se à HGW para este trabalho, parcialmente subvencionado pelo Pulitzer Center on Crisis Reporting.

 

LINKS

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Haiti: Dos escombros – Cobertura especial da IPS, em espanhol

Eurasian Minerals, em inglês

Newmont Mining, em inglês

Majescor, em inglês e francês

VCS Mining, em inglês

 

Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.