TERRAMÉRICA – Inovações e dramas do progresso

As represas que estão sendo construídas em uma parte do Noroeste brasileiro farão desaparecer um modo de vida sob suas águas, impondo avanços e mudanças dolorosas.

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Mutum-Paraná está perto de se transformar em povoado fantasma.
Porto Velho, Brasil, 23 de maio de 2011 (Terramérica).- O povoado amazônico de Mutum-Paraná, no Estado brasileiro de Rondônia, está desaparecendo. Seus últimos imóveis serão desmantelados antes que as águas da represa da hidrelétrica de Jirau, no Rio Madeira, cubra tudo. Um dos habitantes ocasionais de Mutum-Paraná, Francislei Araujo da Silva, sintetiza um modo de vida local que também se extingue diante das mudanças radicais e repentinas provocadas pela construção de duas hidrelétricas no mesmo rio, Jirau e Santo Antônio, distantes 120 quilômetros uma da outra, no Noroeste do país.

 

“Vivo nesta área desde 1989”, disse Francislei ao Terramérica. Suas fontes de renda são mineração, pesca e extração de frutas amazônicas, como açaí e castanha, quando não está trabalhando como taxista entre cidades e povoados do Oeste de Rondônia. Mutum-Paraná, fundado há um século quando a borracha natural fazia a Amazônia prosperar, cresceu como ponto de apoio do garimpo, que se desenvolveu nas três últimas décadas. A atividade assegurava passageiros para o táxi de Francislei.

Diante de iminência da inundação, a maioria dos dois mil habitantes do povoado foi reassentada em Nova Mutum, um conjunto de 1.600 casas e prédios públicos e comerciais construído pelo consórcio Energia Sustentável do Brasil (ESBR), encarregado da obra em Jirau, que tem como principal acionista a corporação francesa GDF Suez. Francislei não foi reconhecido como morador com direito a optar entre uma indenização ou uma nova casa, pois nos dias em que foi feito o levantamento da população “estava fora, com o táxi em Porto Velho”, capital de Rondônia, a 168 quilômetros de Mutum-Paraná, explicou.

Ele reconhece que não tem residência fixa, “às vezes dormia no carro ou em uma pousada”, mas reclama na justiça o mesmo direito que tiveram outros moradores, já que fez sua vida aqui durante mais de 20 anos. Além disso, quer indenização por um terreno que diz possuir do outro lado do rio e que resultará inundado, e pelo mercado de passageiros que perderá como taxista. Quando a represa ficar pronta, o garimpo poderá se sustentar somente com novas tecnologias e dragas maiores, disse Luiz Medeiros da Silva, gerente de Socioeconomia da ESBR, que coordena programas para compensar os desalojados e mineradores, de educação ambiental, e projetos que ficariam como legado para o futuro.

Jirau e Santo Antônio constituem inovações no Brasil. Suas turbinas bulbo exigem pouca queda de água para funcionar e, portanto, represas menores. Jirau inundará 258 quilômetros quadrados, uma superfície pequena se comparada com represas semelhantes, pois terá capacidade para gerar entre 3.300 e 3.750 megwatts. Para desalojar os moradores, houve 316 processos, pela baixa densidade populacional. A maioria optou por indenizações, enquanto 30 preferiram o reassentamento. A central Foz do Chapecó, que inundou 79,2 quilômetros quadrados no sul do país, implicou o deslocamento de quase 2.500 famílias, comparou Anderson Imolesi, encarregado de reassentamento rural de Jirau.

Os afetados na zona do Rio Madeira, além de serem poucos, “não têm perfil agrícola, são ribeirinhos” que também praticam garimpo e pesca, acrescentou. Em sua opinião, os assistidos podem se considerar privilegiados. Além de uma casa em Nova Mutum, cada família recebeu 15 hectares para plantar e uma reserva florestal de 60 hectares de onde é possível extrair frutas, cumprindo uma exigência legal. Além disso, a ESBR promove uma experiência-piloto, combinando piscicultura e horticultura orgânica, que pode abrir alternativas sustentáveis e proporcionar renda para os reassentados rurais.

O projeto prevê dois hectares de tanques para criar o tambaqui (Colossoma macropomum), peixe amazônico, e oito hectares de horta, milho e tubérculos, regados com a água residual da piscicultura que é rica em nutrientes. A meta é produzir 20 toneladas de pescado no primeiro ano, 30 no segundo e 40 no terceiro ano, disse Olga Torres, técnica do Instituto Pró-Natura que conduz a iniciativa para Jirau. A unidade está planejada para 15 famílias que poderão dessa forma ampliar sua renda.

A capacitação e a execução, em ciclos de seis a oito meses, pretendem desenvolver um modelo que seja possível aplicar em outras comunidades, disse Olga. Além disso, o grupo fará reflorestamento, recuperando especialmente a vegetação nas margens dos rios. Este e outros projetos têm o objetivo de deixar algum legado econômico quando terminarem as obras da hidrelétrica, levando ao desaparecimento milhares de empregos na construção da usina.

Com esse fim, foi encomendado um plano de desenvolvimento local a uma equipe da Fundação Getulio Vargas, de São Paulo, que incluiria um polo industrial vizinho a Nova Mutum, para o qual se dispõe de terras, disse Luiz Medeiros. Um fabricante de equipamentos hidromecânicos já decidiu instalar-se no local. Apesar dos esforços, não há forma de mitigar os impactos avassaladores de um megaprojeto como Jirau em um ambiente tão vulnerável. A construção simultânea e próxima de duas hidrelétricas agrava as consequências.

“Há sérios indícios” de que os indígenas ficarão isolados na área de influência das represas, fato que exigia estudos prévios às obras, destacou Israel do Vale, coordenador geral da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindué, com sede em Porto Velho. Rondônia tem 52 etnias indígenas que falam 30 línguas diferentes e sofrem os graves efeitos causados pela rápida ocupação agrícola de seu território, a partir da década de 1970. Com Jirau são afetados os territórios dos grupos karitiana e karipuna, acrescentou. “Não foram cumpridas as medidas condicionantes que as empresas deveriam executar, também antes das obras, para garantir condições de sobrevivência aos indígenas”, queixou-se.

O Movimento dos Afetados por Represas (MAB) protesta pela falta de diálogo por parte da ESBR, contrastando com a atitude dos construtores de Santo Antônio, que aceitaram a negociação e as sugestões sobre como assentar uma comunidade. De todo modo, os dois consórcios só reconhecem como afetados os que sofrem a inundação para formar a represa, e excluem a população alcançada por mudanças indiretas, como perda de meios de vida, de acesso ao transporte ou às escolas, criticou Ocelio Muniz, coordenador do MAB em Rondônia. Ocelio estima que dez mil famílias verão alteradas de alguma maneira suas formas de vida pelas duas hidrelétricas. Santo Antônio admite que esse impacto chegará a apenas 1.621 famílias, e Jirau a muito menos.

* O autor é correspondente da IPS.

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Energia Sustentável do Brasil

Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé

Movimento dos Afetados por Represas, em português e inglês

Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.