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“Testemunhos itinerantes”, uma exposição sobre as guerras em Uganda

1Kampala, Uganda, 18/6/2014 – O escritor e etnólogo malinês já falecido Amadou Hampâté Bâ disse: “Na África, quando morre uma pessoa idosa, é como se queimasse uma biblioteca”, pela perda descomunal de histórias e informação oral que significa. Essa reflexão é especialmente válida para o povo acholi, devastado após a guerra no norte de Uganda.

“Nossa cultura acredita que, quando alguém morre, há um túmulo que documenta a perda. Agora temos que olhar para além das sepulturas”, disse o chefe acholi Rwoth Achoro. Há nove meses, o Projeto de Lei de Refugiados (RLP), da faculdade de direito da Universidade de Makerere, em Uganda, percorre várias regiões do país afetadas pela guerra recolhendo objetos e lembranças de pessoas que sofreram o conflito e que continuam perseguidas por ele. A iniciativa constatou que houve 44 grupos armados registrados em Uganda desde sua independência em 1962.

O projeto Travelling Testimonies (Testemunhos Itinerantes) percorreu os distritos de Kitgum, Kasese, Arua, Nilo Ocidental e Luwero e registrou e reuniu mais de 30 horas de testemunhos de veteranos, ex-combatentes e outros homens, mulheres, meninos e meninas afetados pela guerra. Entre as joias coletadas há um lençol que pertencia a uma mulher em luto que o guardava como recordação de seu filho sequestrado.

“Ela o doou como símbolo e para compartilhar sua lembrança e a ideia das pessoas desaparecidas mais além de seu espaço” concreto, explicou Kara Blackmore, curadora, antropóloga e consultora de patrimônio, em entrevista à IPS. Entre os objetos coletados há um saco de um acampamento do Programa Mundial de Alimentos para refugiados internos, um lançador de granada quebrado e uma vasilha usada em uma cerimônia de reconciliação.

Os objetos tangíveis, que podem parecer simples e são de uso cotidiano, são elementos poderosos porque concentram um grande significado e representam as próprias vozes dos protagonistas. “Todos estão representados, desde um comerciante de armas, passando por um sobrevivente de mina terrestre, até viúvas”, detalhou Blackmore durante uma exposição realizada no distrito de Luwero.

Uma pesquisa realizada em 2007 nas comunidades afetadas pela guerra mostrou que 95% dos consultados disseram que queriam a criação de museus da memória. O RLP constrói um Centro de Documentação de Paz e Memória Nacional em Kitgum. Segundo seus promotores, no próximo ano embarcarão em uma “agressiva campanha de fundos” para terminá-lo. Atualmente, só existe o esqueleto do museu, disse Blackmore.

A organização procura encontrar recursos para terminá-lo e contar com uma mostra multimídia em grande escala dos Testemunhos Itinerantes. Esta é a primeira mostra vinculada aos conflitos que Uganda sofreu. “A pesquisa está tão ligada à comunidade que alguém chega e diz ‘é isto que buscávamos’ e depois as pessoas tomam essa direção. É como um quebra-cabeça”, pontuou Blackmore.

A maioria das pessoas se mostrou disposta a falar abertamente sobre sua vida durante a guerra, mas para alguns foi muito comovedor. “Algumas pessoas ficam muito tristes, mas nesse momento todas parecem promover a ideia de um processo de recuperação da memória”, segundo Blackmore. “Embora se entristeçam e sintam a falta de humanidade, a outra face deste assunto é que também dizem: sim, mas nossos jovens devem sentir e estar expostos a isto”, acrescentou.

O último lugar para onde irá a exposição é a Galeria de Arte da Universidade de Makerere, em Kampala, onde permanecerá aberta ao público a partir de amanhã e até o dia 26 deste mês, antes de regressar ao Centro de Documentação de Paz e Memória Nacional.

Mas as histórias não ficarão aí. O RLP criou um arquivo digital que voltará às comunidades afetadas pela guerra. “Estamos vinculados a organizações locais que conservarão o material para que todos possam vê-lo”, explicou Blackmore. Isso gera um “sentimento de propriedade” da história comunitária “em lugar de tomá-la, escrever sobre ela em outro idioma e depois publicá-la em um lugar ao qual não têm acesso”, acrescentou. Envolverde/IPS