Teresina – Preciso elevar meu conceito de barbárie porque ele está desatualizado.
Esta semana, em um post sobre a morte de um operário de 16 anos durante o desabamento de uma obra em São Paulo, reclamei do absurdo daquilo reunindo à história dele sete outras envolvendo crianças em condições insalubres. Cheguei a pensar se não havia pegado pesado demais. Nesta sexta, aqui no Piauí, cheguei à conclusão que não.
Um auditor fiscal do trabalho me relatou um caso bizarro. Em uma operação, libertou uma jovem de 14 anos que, durante o dia, cuidava do barracão onde estavam alojados outros dez trabalhadores – todos em condição de escravidão, inclusive ela. Arrumava as coisas dos peões, responsabilizava-se pela alimentação, era a empregada do local. À noite, assumia jornada dupla e tornava-se a diversão sexual de todos – isso mesmo, todos – os trabalhadores. Entregava-se “pão e circo” a um grupo de espoliados, no intuito de que esquecessem suas tragédias e reclamassem menos. Não é assim conosco em escala nacional com alguns esportes e festas?
Anteontem, durante uma palestra no Congresso de Jornalismo Investigativo da Abraji, perguntaram-me qual a pior situação que encontrei pelas andanças que tive. Cobri guerras, me meti nos piores buracos, acho que já vi muita coisa. Mas o que sistematicamente me tira do sério é me deparar com crianças completamente alijadas de sua dignidade, que, para sobreviver, emulam uma maturidade que não têm a fim de segurar a barra em um mundo de desgraça. Um amadurecimento incompleto, em que, de noite, se prostituem em boleias de caminhão por alguns reais e, de dia, penteiam bonecas de pano.
(Aí eu ligo a TV e uma socialite diz com a boca cheia de dentes que apoia o “social”. Que dá dinheiro para uma instituição de crianças, pois acha importante ter a caridade no coração. Mais um pouquinho, se ela dissesse que tratava as filhas das suas criadas como suas, me enforcava no quarto do hotel com o lençol.)
Boa parte dessas barbáries são decorrência de nosso modelo de desenvolvimento perverso, que forçam crianças a trabalhar desde cedo e nas piores formas de serviço. E que, para justificar o injustificável, cria todo um discurso de que trabalhar é bom, pois forja o caráter. Barbáries que não vão se resolver com medidas paliativas, como caridade, mas com ações estruturais. O problema é que lutar pela implementação de políticas públicas efetivas ou pela aprovação de leis pode não servir para deixar a consciência mais leve na cama à noite no curto prazo.
A jovem de 14 anos do caso acima trabalhava em uma área destinada à produção de leite. Mas como não nos importamos em saber de onde vêm os produtos que consumimos e o caminho de impactos negativos que alguns deles vão gerando pelo caminho para suprir nossa demanda, ela simplesmente não existe. Ou melhor, existe, mas é um dano colateral necessário.
Trago o poeta inglês John Donne, citado em “Por Quem os Sinos Dobram”, de Ernest Hemingway:
“Nenhum homem é uma ilha, inteiramente isolado / Todo homem é um pedaço de um continente, uma parte da terra / Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa de teus amigos ou a tua própria / A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. / E por isso não perguntes por quem os sinos dobram: eles dobram por ti.”
Em outras palavras, o sofrimento de qualquer pessoa me diminui, pois sou parte da humanidade: nunca procure saber por quem os sinos dobram, pois eles dobram por você também.
Se o problema é do filho ou filha do outro, do desconhecido distante, então que se dane. A verdade é que defendemos liberdades coletivas quando estas nos dizem respeito individualmente. Será que vamos, um dia, conseguir defender o outro simplesmente porque ele é (ou deveria ser) semelhante a mim em direito e dignidade?
* Publicado originalmente no Blog do Sakamoto.