Três questões de novo tipo encerram a complexa engrenagem capitalista: a resolução da consolidação do novo centro dinâmico global, a conformação de outra relação do Estado diante do avanço do processo de hipermonopolização do capital e a regulação do novo paradigma produtivo assentado na expansão do trabalho imaterial.
Os termos do debate sobre a crise do capitalismo global correm o sério risco de ficar restritos cada vez mais às superficialidades dos entendimentos de curto prazo, que no máximo massageiam a ponta do iceberg. Natural, quando a capacidade de produzir conhecimento encontra-se cada vez mais (i) fragmentada, no caso das ciências, pelas especializações estimuladas pela visão neoliberal, (ii) enfraquecida pela orientação competitiva e produtivista em vigor nas universidades e (iii) enviesada pela lógica da comunicação contida de twitters, facebooks, e-mails, blogs, etc.
Na mesma direção, o exercício do monopólio da mídia aprofunda-se na arte de confundir, o que ajuda mais o processo em curso de alienação. A escassez dos debates mais aprofundados sobre a mais grave crise do século impede que partidos políticos, sindicatos e o próprio movimento social identifiquem nesse acontecimento de ordem global a grande oportunidade para que a história seja escrita de outra forma.
Isso porque a crise não resulta de um corpo estranho ao modo de produção capitalista. Pelo contrário, compreende justamente as situações específicas em que as condições de sua reprodução encontram-se esgotadas, enquanto as novas ainda permanecem imaturas. A longevidade da manifestação das crises depende fundamentalmente da capacidade política de superação dos entraves à reprodução do capital, simultaneamente ao abandono das velhas e anacrônicas formas de seu funcionamento. Consequentemente, a incapacidade política de superação da crise no capitalismo pode levar, inclusive, ao aparecimento de outros modos de organização social e produção econômica e à transição para eles.
Nesse sentido, os arranjos político-institucionais se mostram estratégicos para a resolução ou continuidade das crises numa economia monetária de produção e distribuição de riqueza. E dependem direta e indiretamente dos enfrentamentos entre novos e velhos sujeitos e classes sociais. Com essa perspectiva, o presente artigo procura oferecer pistas para o entendimento dos elementos novos nas condições de reprodução capitalista, que, sem sua resolução política, poderão conferir maior longevidade à manifestação da crise atual. Antes disso, contudo, ressaltam-se brevemente as especificidades caracterizadoras das crises e suas transformações no capitalismo.
Especificidades das crises capitalistas
Os últimos dois séculos foram marcados pela convivência com distintas crises no modo de produção capitalista. Duas delas, todavia, merecem maior atenção. A primeira, ocorrida entre 1873 e 1896, expressou um conjunto de obstáculos para a consolidação do capitalismo urbano-industrial diante dos entraves emergentes da velha sociedade agrária. Destaca-se que, até o início do Século 19, o capitalismo urbano-industrial encontrava-se centrado na Inglaterra, enquanto predominavam em praticamente todo o mundo as sociedades agrárias em seus mais variados graus de funcionamento.
Com o avanço, no Século 19, do ciclo de industrializações retardatárias em alguns países como Alemanha, Estados Unidos, França, Rússia, Itália e Japão, tornaram-se claras as disputas pela hegemonia de novos centros dinâmicos mundiais, não mais e apenas concentrados na velha Inglaterra. As duas violentas disputas mundiais, expressas pelas grandes guerras de 1914 e de 1939, consolidaram os Estados Unidos como centro dinâmico capitalista, ainda que em crescente tensão com o bloco de países de economias centralmente planejadas, liderado pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Toda essa transição geopolítica no capitalismo mundial foi acompanhada pelo aparecimento e pela consolidação de novos sujeitos sociais em âmbito nacional, como no caso das classes trabalhadoras e burguesas. A estruturação de inovadoras instituições de representação dos interesses desses novos sujeitos pelas mãos de sindicatos e associações patronais e laborais e partidos políticos consagrou o regime democrático formal como arena da resolução de conflitos capaz de oferecer possibilidades menos desiguais de produção e repartição da riqueza. A combinação explícita ou implícita dos entendimentos entre classes trabalhadoras e burguesas permitiu superar entraves impostos pelas condições de reprodução capitalista envelhecida pelo velho agrarismo.
Mas isso, todavia, somente se tornou mais evidente a partir da resolução dos obstáculos revelados pela grande crise de 1929. De um lado, o abandono das ultrapassadas formas de funcionamento do Estado mínimo liberal, que permitiu a constituição de um novo Estado ampliado em suas funções e fortalecido pela regulação da competição capitalista. Com isso, o excedente econômico crescentemente multiplicado passou, em parte, a retornar a seus geradores originais, os trabalhadores. Estes, por sua vez, conquistaram, entre vários aspectos, a liberação do tempo de trabalho ao qual se encontravam prisioneiros. Assim, ganhou importância a libertação do trabalho heterônomo pela educação, nas faixas etárias mais precoces (crianças, adolescentes e jovens), e pelos esquemas de aposentadoria e pensão, nos estratos adoentados e envelhecidos; bem como a redução da jornada de trabalho (férias, feriados e tempo de 48 horas semanais).
De outro lado, houve a fundamentação do padrão regulatório da competição e dominação intercapitalista em âmbito nacional e supranacional. O avanço das grandes empresas multinacionais e o caráter cada vez mais imperialista de manifestação do desenvolvimento capitalista no mundo exigiram o restabelecimento de acordos entre as principais nações. Nesse momento, os Estados Unidos assumiam de fato o centro econômico dinâmico do mundo, com moeda de curso internacional (padrão monetário ouro-dólar), forças armadas predominantes e complexo produtivo e tecnológico de grande dimensão.
A consagração do sistema das Nações Unidas permitiu o estabelecimento de uma arena política reconhecida por todos os atores na definição compartilhada de soluções que atendessem aos compromissos ou às intervenções multinacionais em relação aos conflitos armados, assim como a regulação econômica (financiamento e moeda internacional) e comercial (liberação de fluxos financeiros e de bens e serviços interpaíses). Assim, por quase três décadas a partir do segundo pós-guerra, a trajetória de dinamismo capitalista foi surpreendentemente alta e associada aos anos de ouro, com a profusão da norma de produção e consumo do american way of life.
Em plena Guerra Fria (1947-1991), alguns países periféricos conseguiram fazer avançar modelos distintos de constituição da sociedade urbano-industrial. Na América Latina, a experiência da industrialização tardia se deu por meio da associação subordinada do capital estatal e da burguesia nacional ao das grandes empresas multinacionais. A internalização da industrialização implicou modernização capitalista inegável em meio à maior dependência nacional ao capital internacional. Em alguns países asiáticos, a experiência de industrialização seguiu com maior apoio ao nascimento e fortalecimento de grandes empresas nacionais, contendo articulação entre capitais estatais e da burguesia nacional.
Desde o começo da década de 1970, entretanto, sinais de esgotamento do paradigma da sociedade urbano-industrial passaram a ser observados. Inicialmente, a incapacidade de os Estados Unidos manterem intacta sua moeda de curso internacional, o que ficou claro com as medidas de abandono do padrão ouro-dólar. Também a regulação supranacional da competição intercapitalista sofreu abalos, com a crescente desregulação do sistema financeiro diante da crescente liquidez internacional gerada pelo deslocamento das grandes empresas multinacionais, novos enriquecimentos de países exportadores de petróleo e dos fluxos financeiros provenientes de atividades ilegais (tráfico de armas, pessoas, corrupção, drogas, entre outros).
Ademais, o enfraquecimento relativo dos Estados Unidos em relação aos milagres econômicos da Alemanha e do Japão passou a indicar o aparecimento de um novo campo da política internacional para a disputa da sucessão norte-americana na hegemonia mundial. A resposta não tardou. A substituição dos pressupostos econômicos e monetários keynesianos pelo receituário neoliberal abriu novas oportunidades para o soerguimento repentino norte-americano em meio às crescentes fragilidades dos alemães, expostas pela unificação das duas Alemanhas, com o fim da Guerra Fria, e dos japoneses, que amargaram mais de uma década de crise imobiliária, o que antecipou rapidamente a decadência nipônica.
O destampar do neoliberalismo fortaleceu o coração financeiro dos Estados Unidos com o enriquecimento impressionante do capital fictício. A acumulação capitalista por meio da expansão financeira de direitos de acesso à riqueza foi facilitada pela revolução tecnológica, especialmente nas áreas de informação e comunicação. Mas isso foi tornando gradualmente a economia norte-americana oca, pelo esvaziamento de seu sistema produtivo e o engrandecimento do seu castelo de cartas (dialética da geração de direitos de riqueza imaterial sem a equivalência da riqueza material).
Outra característica marcante da liderança neoliberal no fim do Século 20 foi o aprofundamento do movimento de concentração e centralização do capital, convergindo cada vez mais para o engrandecimento das corporações transnacionais. As reformulações que apequenaram o papel do Estado, orientadas pela cartilha do Consenso de Washington e difundidas pelo sistema das Nações Unidas (Banco Mundial e FMI) e pelas representações nacionais vassalas (mídia, academia e política), foram vitais para o fortalecimento do poder privado sem comparação anterior.
Mas a manifestação da crise em 2008 terminou por enunciar sua importante especificidade histórica. Pela primeira vez se observa uma crise efetivamente de dimensão global, com todos os países submetidos à lógica do capital. Nas grandes crises de 1873 e de 1929, o capitalismo não se apresentava ainda global, pois havia a presença de partes do planeta submetidas à condição de colônia e às experiências do socialismo desde 1917.
Além disso, a crise atual revela-se sistêmica perante a gravidade que resulta da insustentabilidade ambiental, da fome e da pobreza mundiais, da ignorância e insalubridade populacional globais. Não se trata, portanto, de uma crise de natureza estritamente econômica, pois é muito mais do que isso, especialmente quando se considera o curso da revolução tecnológica e do reaparecimento de novas centralidades dinâmicas globais. Até pouco tempo seria inimaginável acreditar que os Estados Unidos pudessem depender das decisões do Partido Comunista chinês ou que países como Itália e Espanha, para não dizer a União Europeia, recorressem à Índia e ao Brasil para evitar o colapso de suas finanças públicas (uso das reservas soberanas na aquisição dos títulos do endividamento público).
Crise como condição de transformação
O mundo continuará a conviver com a crise atual por tanto tempo quanto depender o processo de maturação do novo, em meio ao esgotamento das velhas condições de reprodução capitalista. Três questões de novo tipo encerram a complexa engrenagem capitalista, a saber: (i) a resolução da consolidação do novo centro dinâmico global; (ii) a conformação de outra relação do Estado diante do avanço do processo de hipermonopolização do capital; e (iii) a regulação do novo paradigma produtivo assentado na expansão do trabalho imaterial.
Na perspectiva histórica, a emergência de novos centros dinâmicos não constitui fato inédito. A passagem do centro mundial asiático para a Inglaterra na segunda metade do Século 18 e a ascensão norte-americana no final do Século 19 não se deram de forma pacífica. Tudo foi acompanhado por importantes conflitos armados. No caso atual, quando a crise global deixa claro o conjunto de sinais de decadência dos Estados Unidos em meio à ascensão asiática, fica a pergunta: como será a acomodação dos países desenvolvidos perante o reposicionamento de nações que até então eram somente periféricas (China, Índia e Brasil)? A ausência de mecanismos de regulação global que permitam expressar essa nova realidade, como moeda de curso internacional, mantém ativo o desequilíbrio entre nações sem grandes complexos militares e tecnológicos.
Uma nova governança mundial seria necessária, pois o atual vazio do sistema das Nações Unidas parece inconteste. O G20 ganhou expressão recente e importante, mas não tem institucionalidade e legitimidade requerida para colocar em prática suas decisões. É uma excrescência a permanência nos dias de hoje dos chamados países paraísos fiscais. O G20 já chamou a atenção para isso, mas quais foram as ações adotadas para a resolução do problema?
Da mesma forma, a força das corporações transnacionais a dominar cada vez mais qualquer setor de atividade econômica torna proporcionalmente superior o exercício do poder soberano pelos Estados nacionais. Não são mais países que têm empresas, mas empresas que têm países e que se mostram capazes de financiar partidos e políticos e tornar presidentes, governadores e prefeitos, muitas vezes, meros caixeiros-viajantes dos interesses dos grandes grupos privados. Os regimes democráticos distanciam-se da expressão popular, subvertidos que são cada vez mais pelo poder do dinheiro e pelos interesses lucrativos do grande capital desviado de qualquer compromisso com a sustentabilidade do planeta. Como alterar o padrão econômico insustentável ambientalmente quando são as grandes corporações transnacionais – não mais de quinhentas no mundo – que resistem a manter intactos o modo de produção e a distribuição de riqueza comprometedora dos recursos naturais?
O que se poderia esperar quando cerca da metade da riqueza do mundo e quatro quintos dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento tecnológico são de responsabilidade das quinhentas maiores corporações transnacionais? Elas governam o mundo, pois se tornaram tão grandes que não podem mais nem sequer quebrar. Além disso, corporações são cada vez mais dependentes da associação com o Estado nacional, sugando, como carrapatos, parcela crescente do orçamento público. A alternativa tem sido ampliar o ajuste fiscal, comprimindo o financiamento do Estado de bem-estar social e ofertando recursos adicionais aos que “realmente contam” na lógica da crise global.
Por fim, a transição para o trabalho imaterial, que faz emergir novas formas de riqueza assentada sobre exploração jamais vista, embora desconhecida diante do véu de alienação que cega aqueles que em tese deveriam, pelo menos, vigiá-la, denunciá-la e lutar contra ela. As jornadas de trabalho são mais intensas e extensas, pois a presença constante das novas tecnologias de informação e comunicação permite levar o trabalho heterônomo a qualquer lugar. O curso do desenvolvimento capitalista apropria-se não somente da força física do trabalhador, mas cada vez mais de seu coração e mente.
A mão de obra segue plugada no trabalho quase 24 horas por dia. Se existe mais trabalho, há, em consequência, mais riqueza, que se concentra e conforma a força dos novos monopólios globais. Esta trajetória histórica do capitalismo corrói a força de seu dinamismo, que se tornou restabelecido quando reformas desconcentradoras da riqueza foram realizadas, especialmente pela força dos agentes sociais, e instrumentalizadas pelo Estado. Os atores políticos de uma nova ordem que protagonizariam a reforma do Estado forte e regulador seguem ainda desconhecidos.
* Marcio Pochmann é professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas, e presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
** Publicado originalmente no site Diplomatique Brasil.