O ambientalismo para mim não é uma religião. Portanto, abaixo os dogmas, os mitos ou líderes “intocáveis”.
Fico com o escrutínio, o livre arbítrio e os exames de consciência, e com as lições que a História com H maiúsculo nos está ensinando.
Dito isto, não compartilho da atitude sugerida por alguns de “silenciar” sobre o documentário Planet of the Humans (disponível no Youtube), muito menos bani-lo, deixá-lo cair no limbo.
Refutá-lo com vigor, se o vigor e o rigor existem, me parece o caminho mais sensato.
Nesta terceira parte da minha apreciação do conteúdo bombástico apresentado por Jeff Gibbs, diga-se de passagem, um ambientalista, vou me deter no âmago da questão: o novo mundo, mais sustentável, prometido pela adoção massiva das energias renováveis é afinal uma utopia possível?
Segundo o documentário – que seleciona cases de claro green washing e de experiências danosas ao meio ambiente, estamos seduzidos por uma quimera criminosa. Engano legitimado por líderes ambientalistas insuspeitos e organizações de peso.
Nem vou entrar na discussão que põe na primeira página o fato de que as antigas empresas de energia – com base em combustíveis e energia fósseis – estão migrando para o novo “campo”, e garantindo aos seus acionistas os lucros de sempre. Só que, desta feita, com milhões de subsídios (dinheiro dos contribuintes) ajudando a encher os bolsos dos capitalistas. Em vez do capitalismo verde, o velho capitalismo smart.
Acho que essa história dos subsídios funcionam, em nossa cabeça “verde”, assim: retirar subsídios das atividades intensivas em energia e materiais não renováveis, e alocá-los nas novas modalidades, limpas. Excelente mantra, generosa intenção.
As ditas energias renováveis nem sempre passam pelo crivo de limpas. É o caso da biomassa, seja a queima de árvores plantadas – como ocorre nas chamadas “florestas energéticas “, usadas pelas guseiras no Brasil, por exemplo, seja na energia produzida por incineração do bagaço de cana, de lixo, etc.
Exigem grande quantidade de biomassa para o funcionamento contínuo e não são friendly em emissões.
Ainda assim, mostra o filme de Michael Moore e Gibbs – que uma “condenação explícita” desta prática, por parte dos ambientalistas norte americanos só veio a público após o lançamento das denúncias do filme.
Passemos à energia eólica. O “mapa dos ventos” é necessário. Vento depende de clima e fenômenos climáticos hoje em dia são instáveis, como sabemos.
O que fazer com os cada vez mais imponentes e multiplicados aos milhares – os parques eólicos – se deixar de ventar em determinada região?
Várias comunidades já vêm reclamando dos danos à paisagem e às aves de arribação.
As turbinas, além disso têm vida útil curta – como reciclá-las? O que faremos com a sucata das turbinas, o mesmo se aplicando aos painéis solares.
Tanto os painéis solares, em fase de massificação, quanto os parques eólicos exigem cada vez mais terrenos e maiores, e logística que muitas vezes sacrificam bosques, vegetação nativa e patrimônio paisagístico.
Sem falar no processo de produção dos equipamentos. Em inglês o termo é “row materials”, para o uso de metais pesados ou raros, não renováveis: cádmio, chumbo, silício, lítio (para as baterias cada vez maiores exigidas pelas usinas solares).
Além da disputa quase colonial – imperialista sem dúvida – para a obtenção desses materiais, ainda tem o trabalho infantil ou escravo, e a contabilidade das emissões no processo mesmo de produção de todos esses equipamentos. Processo esse movido à diesel, gás, ou hidroeletricidade.
Aí está a cena toda. Complexo, certo?
E é com base nestas “evidências ” que a acusação de que estamos ingressando em uma nova era – livre dos combustíveis fósseis e do uso de matéria não renovável – não passa de uma quimera.
Todos os países e sociedades ambicionam desenvolver-se e prosperar. Nenhum dos projetos atuais de desenvolvimento prevê uma diminuição da demanda por energia. O crescimento mundial da população não dará folga e a tecnificação em curso tampouco prevê uma diminuição da demanda.
O uso massivo das energias ditas limpas ou renováveis causam danos ao meio ambiente. Quanto?
A pergunta é, em igual monta? Causa danos piores do que a prospecção e queima de fósseis?
Em que medida a transição energética, tal como a conhecemos hoje, cumpre seu papel de nos conduzir a uma nova era?
Responder a esta pergunta me parece crucial.
O que pretendo fazer amanhã – na parte final do meu comentário ao filme.
Amanhã.
Samyra Crespo é cientista social, ambientalista e pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins e coordenou durante 20 anos o estudo “O que os Brasileiros pensam do Meio Ambiente”. Foi vice-presidente do Conselho do Greenpeace de 2006-2008.