Córdoba, Argentina, 27/2/2015 – Fenômenos pluviais atípicos e cada vez mais frequentes na Argentina, como os que provocaram as inundações na província de Córdoba, centro do país, indicam a necessidade cada vez mais imperiosa de políticas de reordenamento territorial e de um combate efetivo ao desmatamento.
Definidas pelo governador de Córdoba, José Manuel de la Sota, como “um tsunami que caiu do céu”, as chuvas do dia 15 deste mês afetaram 320 quilômetros quadrados do cordão montanhoso de Sierras Chicas, no noroeste da província, deixaram oito mortos e 1.500 casas destruídas. Ontem, outro forte temporal, desta vez no leste e sudeste de Córdoba, voltou a inundar vários povoados e obrigou à evacuação de mais de 800 pessoas, segundo dados provisórios, mas sem vítimas fatais.
“Foi uma catástrofe: pontes quebradas, casas destruídas, uma praça com sua área esportiva já não existe, várias centenas de metros de tubulação que abastecem de água desapareceram. E o mais lamentável, a morte de pessoas”, contou à IPS o ambientalista Ricardo Suárez, morador do município de Río Ceballos, uma das localidades mais afetadas pelas inundações do dia 15.
Mas o “tsunami” desse dia, uma metáfora para os 320 milímetros de chuva que caíram em 12 horas nessa região de 300 mil habitantes, “não caiu do céu”, segundo Raúl Montenegro, presidente da Fundação para a Defesa do Meio Ambiente. “Sierras Chicas depredadas, loteadas por imobiliárias, e sem populações preparadas, causaram a tragédia”, resumiu à IPS este biólogo, prêmio Nobel Alternativo, entregue anualmente no parlamento sueco aos que lutam por um futuro melhor para o planeta.
“A mão humana interveio para que isso se agravasse”, acrescentou Suárez, diretor do Projeto de Conservação e Reflorestamento das Sierras Chicas de Córdoba. “Praças sobre o rio, casas construídas em suas margens, lixo sem recolher, plantio de árvores exóticas que não se adaptam às cheias, pontes para pedestres e particulares para carros, por todo lado falta de planejamento, de alertas e de prevenção”, detalhou.
Segundo Montenegro, a tragédia teve duas causas principais: “precipitações extensas em um curto espaço de tempo e ambientes serranos desmatados”, onde os principais cursos de água nascem. “A deterioração ambiental das serras as transformou em perigosos e imprevisíveis tobogãs que enchem rapidamente os cursos de água”, acrescentou.
Federico Kopta, biólogo e presidente do Fórum Ambiental de Córdoba, explicou à IPS a função da vegetação nativa nas montanhas. “Atua como uma espécie de guarda-chuva, evitando que a água tenha impacto direto e desagregue o solo”, explicou. Além disso, junto com suas raízes, “funciona como uma espécie de rede que sustenta o solo e evita que seja arrastado ladeira abaixo”, pontuou.
Também age como uma “espécie de esponja, retendo a água na parte superior das serras e administrando-a lentamente”, acrescentou Kopta. Quando essa vegetação desaparece “aumenta a vazão da água na superfície” e com a erosão hídrica e as inundações “resta menos reserva de água durante a estação seca”, ressaltou o especialista.
A organização Greenpeace atribuiu o aumento de inundações na Argentina à alta taxa de desmatamento, apesar da entrada em vigor, no final de 2007, da Lei para a Proteção das Florestas Nativas, com orçamento específico para sua restauração.
Kopta destacou que em Córdoba restam menos de 4% de suas florestas originais. Isso depois que, entre 1998 e 2007, o desmatamento na província, a segunda mais habitada do país, chegou aos 247.967 hectares, e depois que, entre 2007 e 2013, foram eliminados 44.823 hectares, dos quais 10.796 eram florestas protegidas por lei.
“Os desmatamentos para desenvolvimento agropecuário e urbano arrasaram as florestas nativas frágeis perdendo a proteção da vegetação frente às fortes chuvas”, diz o Greenpeace em um comunicado do dia 18 deste mês. “Ironicamente, desmatamento, incêndios e avanço imobiliário sobre as serras causam duas crises que se contrapõem: rios sem água no inverno e perigosamente transbordando durante as chuvas de verão”, disse Montenegro, ao recordar que em Córdoba praticamente foram eliminados dois de seus três grandes ecossistemas.
O desmatamento “mais violento”, segundo Montenegro, foi na década de 1990 e coincidiu com a introdução na província de cultivos transgênicos (geneticamente modificados) de soja, milho e algodão. A construção de condomínios, indústrias e grandes complexos turísticos também impulsionou o desmatamento em Córdoba, que contribuiu com 8% para o produto interno bruto argentino.
Kopta considera que “a mão do homem” influiu duplamente na catástrofe. Em um contexto global, recordou que o aquecimento do planeta gera maior frequência de eventos climáticos extremos, “algo que os cordobeses não podem manejar”. Em um contexto mais local, acrescentou, a tragédia está relacionada com o incorreto uso dos recursos naturais.
Nesse sentido, segundo Kopta, a “devastação da vegetação nativa” na cabeceira das bacias, causada por incêndios florestais, desmatamento e invasão de espécies de fora, além do pastoreio em altura, “mudam a dinâmica hídrica do lugar. É urgente limitar os grandes empreendimentos imobiliários e as urbanizações nas montanhas, que agravam o desmatamento, enfatizou.
Kopta acrescentou que essas urbanizações se multiplicaram nos últimos 20 anos, “pela grande demanda de gente que, trabalhando na cidade de Córdoba, utiliza Sierras Chicas como dormitório”, o que, por sua vez, gerou ocupações em lugares inundáveis. A capital provincial, de mesmo nome, é a segunda cidade do país e concentra mais de 40% da população da província.
“Entende-se que cada vez somos mais e necessitamos de moradia digna, mas é tão pouco o controle que, por exemplo, se autorizou a construção de duas casas próximas a um riacho e, naturalmente, hoje estão inundadas e a rua destruída pelo desvio do próprio riacho”, apontou Suárez. Montenegro pediu que sejam reativados os comitês de bacias hídricas para evitar essas tragédias.
Por sua vez, Kopta cobrou a aplicação das leis de planejamento urbano e proteção florestal, para reordenar e proteger o território, incluindo a assessoria de geólogos e especialistas em morfologia da terra. Também considera necessário que as obras de infraestrutura contemplem a nova realidade climática. “Às vezes, quando as pontes não são suficientemente altas, atuam como diques, onde param os troncos e restos de árvores, o que leva às cheias, fazendo a água subir e inundar”, acrescentou.
Suarez se referiu a outros casos de “mau planejamento de obras”, como o de estradas, “que não têm avaliação de impacto ambiental”.
Kopta recordou que alguns engenheiros propõem obras preventivas com “lagoas de retenção”, para diminuir o escorrimento da água. Mas, ressaltou, antes de tudo “é preciso aumentar a superfície de florestas nativas, o controle de espécies de fora e o cuidado com florestas e pastagens, para evitar que se coloque fogo em áreas de sobrepastoreio”.
Esses fenômenos meteorológicos “já não são atípicos”, destacou Suárez, para quem não é paradoxal “que hoje vivemos inundações e há um ano lutávamos por uma gota de água”. Alertou que “isso é o que vamos viver devido ao dano ambiental sofrido. A província já não possui resistência ambiental e qualquer evento se transformará em uma tragédia”, ressaltou. Envolverde/IPS