Tucuruí: "Mesmo depois de 30 anos continuamos sem receber indenização"

Câncer, depressão, prostituição, extinção de peixes, desmatamento e destruição de toda uma vida foram alguns dos custos que pagam, há 30 anos, mulheres e suas famílias após a vinda da usina hidrelétrica de Tucuruí (PA).  Muitas ainda não receberam nenhum tipo de compensação pelos impactos recebidos.

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Dilma: "Tucuruí é pior do que um monstro. Porque um monstro a gente vê e mata, esse bicho (usina), não. É preciso muito trabalho, muita articulação para amenizar a vida da população atingida".
Uma vida construída às margens do rio Tocantins.  Lá a família plantava e pescava o que comia e o que vendia para sobreviver.  Toda uma história de luta para construir uma vida melhor.  Até que, de repente, sua família viu-se obrigada a ter de sair do local, com uma ‘mão atrás da outra’, ‘sem eira nem beira’.  O motivo?  A construção da maior hidrelétrica nacional, Tucuruí, que a partir da década de 1970 desalojou, além da família de Dilma Ferreira Silva, também outras centenas de pessoas com o discurso da vinda de mais desenvolvimento à população.

 

 

“Minha cidade ficou alagada.  A usina, quando abriu as comportas, levou tudo.  Assim foi, assim será com outras (usinas hidrelétricas)”, diz Dilma.  Atualmente, existem 573 hidrelétricas e Pequenas Centras Hidrelétricas (PCHs) no país, 62 sendo construídas e 167 em planejamento, segundo os dados da Agência Nacional de Energia Elétrica.

Apesar de ter o mesmo nome da presidenta do Brasil, Dilma pouco foi reconhecida pelo governo: mesmo após 30 anos da vinda da obra, sua família ainda não recebeu nenhuma compensação por tudo o que teve que deixar no local.

“Minha cidade ficou alagada.  A usina, quando abriu as comportas, levou tudo.  Assim foi, assim será com outras (usinas hidrelétricas).”

Ela, que atualmente coordena a regional de Tucuruí do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), conta que na época em que se iniciaram as obras, não havia um estudo apropriado para a indenização das pessoas atingidas.  “Naquele tempo, não tínhamos orientação, era a empresa que oferecia o que ela queria a quem ela escolhia indenizar.  Outras famílias foram indenizadas, mas nós não recebemos nada.  Mesmo depois de 30 anos, continuamos sem receber”.

Obrigada a sair do local sem quaisquer recompensas por tudo o que tinham deixado, a família de Dilma teve que iniciar uma nova vida.  “Depois da chegada da usina, todos fomos para a cidade.  Meu pai não se acostumou a morar na cidade e teve que recomeçar sua vida no Maranhão.  Ele passou toda uma vida dando estrutura para nós (família) e, quando ele conseguiu, tivemos que sair: perdemos tudo de uma hora para outra”, diz Dilma.

Com o intuito de gerar mais energia e tornar navegável um trecho do rio, iniciou-se, em 1975, a construção da Usina Hidrelétrica de Tucuruí.  Com ela, são gerados 8.370 MW de energia, sendo que a maior parte, cerca de 70%, é destinada às siderúrgicas para a produção de alumínio para exportação.

No entanto, a energia produzida tem um custo, com um valor muito mais caro a ser pago pelas mulheres.  De acordo com o estudo “O Impacto das Barragens na Vida das Mulheres: Relatório sobre a Violação dos Direitos Humanos das Mulheres Atingidas”, elaborado pelo MAB e que ainda não foi lançado, “ademais dos impactos ambientais e sociais, a perda do rio e da casa, as mulheres sofrem profundas perdas que vão para além do material, passando por graves problemas de depressão e desilusão associados à desestruturação de suas vidas e ao afastamento do convívio de parentes e amigos”.

“Para matar a floresta, eles (responsáveis pela obra) usaram o veneno de efeito laranja e, com isso, as famílias da jusante tiveram doenças, principalmente as mulheres, que tiveram câncer de pele.”

O caso da família de Dilma não foi diferente.  “Minha mãe, quando soube que tinha que deixar sua casa, entrou em depressão.  Ela chorava, não queria construir nada porque se  construísse, a usina iria levar embora.  Ela ficava deitada”, conta Dilma, que também sentiu o impacto que a usina iria trazer à sua vida.  “Eu me senti muito estranha, a barragem mudou toda a minha estrutura.  Tive que deixar o meu local, a minha história, tudo o que vivi e tentar me estruturar na cidade”.

Segundo o estudo, a comissão especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) reconheceu que as mulheres são atingidas “de forma particularmente grave e encontram maiores obstáculos para a recomposição de seus meios e modos de vida; […] não têm, via de regra, sido consideradas em suas especificidades e dificuldades particulares”, e por isso “têm sido vítimas preferenciais dos processos de empobrecimento e marginalização decorrentes do planejamento, implementação e operação de barragens”.

Um dos efeitos destes processos é a exploração sexual vivida por mulheres.  De acordo com o estudo, durante as obras para construção de barragens, a prostituição nas cidades que recepcionam os grandes projetos de barragens vem crescendo.  Em Tucuruí, não foi diferente.  “Muitas mulheres que não tinham de onde tirar o seu sustento, foram para a prostituição”, diz Dilma.

As mulheres também sofreram com as doenças trazidas pela obra.  “Tanto na montante, como na jusante do rio, há impactos.  Para matar a floresta, eles (responsáveis pela obra) usaram o veneno de efeito laranja e, com isso, as famílias da jusante tiveram doenças, principalmente as mulheres, que tiveram câncer de pele”, diz Dilma.

Outros impactos

Com a vinda do empreendimento, outras mudanças foram sentidas, a começar pelo meio ambiente: com a construção, mais de 37 espécies de peixes sumiram.

Acompanhando a destruição ambiental, chegaram os problemas sociais.  Antes de a hidrelétrica chegar, Tucuruí possuía nove mil habitantes.  Atualmente, ela abriga 90 mil.  Esta população sofre até hoje com a falta de planejamento na infraestrutura para atender a população migrante.  A superlotação da cidade trouxe alguns “presentes” aos seus habitantes.  “Com essa obra, veio o roubo, o vandalismo, a exploração sexual.  A violação dos direitos humanos foi muito grande”, explica Dilma.

“Com essa obra, veio o roubo, o vandalismo, a exploração sexual. As mulheres que não tinham de onde tirar o seu sustento, tinham que ir para a prostituição.”

A coordenadora do MAB mostra que até hoje o desenvolvimento prometido pelo consórcio administrador da usina não tem se mostrado.  “Hoje não há tratamento de água, na seca do rio, a água é grossa, o banheiro não tem fossa e o esgoto mistura-se com a água do rio.  Não mudou nada”, diz.

“Tucuruí é pior do que um monstro.  Porque um monstro a gente vê e mata, esse bicho (usina), não.  É preciso muito trabalho, muita articulação para amenizar a vida da população atingida.  Vivemos num país democrático, mas as coisas continuam iguais com as eclusas de Tucuruí”, desabafa Dilma, que logo faz um convite: “Gostaria que todos que tivessem dúvidas sobre o que criticamos viessem ver a realidade daqueles que são afetados pelas barragens.  O melhor conhecimento é a experiência, por isso convido a todos que nos visitem, que visitem outras hidrelétricas para ver a realidade”.

Luta organizada

A luta social em busca de seus direitos traz uma importância fundamental às mulheres, dentro de seu processo de empoderamento.  Apesar de sofrerem mais impactos que homens, as mulheres que estão organizadas não deixam de ver a luta com a perspectiva de comunidade.

“O que nos dá força é o movimento (MAB), é a luta para não deixar que aconteça com os outros”, explica Dilma, ao ser questionada sobre o motivo que a fez entrar no Movimento dos Atingidos por Barragens.

Foi no MAB que Dilma encontrou um caminho para lutar por seus direitos.  A partir do início de sua participação, ela mudou sua perspectiva de mundo.

“Antes vivia com um companheiro e pensava que era natural a mulher não participar de movimentos e tomadas de decisões.  Comecei a ir aos encontros do MAB porque eles entregavam cestas básicas, mas logo vi que era necessário lutar pela comunidade, e nunca mais deixei o MAB”, diz ela.

Dilma hoje vive somente com a filha.  “Meu esposo disse que era para eu escolher entre a casa e o movimento.  Escolhi o movimento porque tenho que ser respeitada enquanto mulher”, conta.

* Publicado originalmente no Amazônia.org.br.