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Turquia ficará presa nas areias movediças do Iraque?

Mapa do oleoduto entre Kirkuk, no Curdistão Iraquiano, e Ceyhan, na Turquia. Foto: Domínio público
Mapa do oleoduto entre Kirkuk, no Curdistão Iraquiano, e Ceyhan, na Turquia. Foto: Domínio público

Ancara, Turquia, 27/5/2014 – A decisão do Governo Regional do Curdistão (GRK) no Iraque de enviar seu primeiro carregamento de petróleo para a Europa pelo Porto de Ceyhan, no sul da Turquia, foi recebida com reações contrapostas pelas diferentes partes envolvidas. Mas o que o governo turco pode considerar uma benção, em um momento em que a confiança no futuro da economia do país cambaleia, pode ser uma maldição política para as problemáticas relações entre Ancara e Bagdá.

De fato, o governo do Iraque demorou menos de 24 horas para reagir à notícia. No dia 23, o Ministério do Petróleo iraquiano anunciou que “apresentará à Câmara de Comércio Internacional de Paris uma demanda de arbitragem contra a República da Turquia e seu operador de gasodutos estatal, Botas”.

O recurso, segundo o Ministério, foi apresentado “para deter o transporte, armazenamento e carregamento sem autorização” do petróleo originário do GRK para um dos dois oleodutos do Iraque e da Turquia, que começa na iraquiana Kirkuk e chega a Ceyhan. Além disso, Bagdá pretende cobrar de Ancara mais de US$ 250 milhões por danos financeiros.

Por um tratado assinado em 1973 e modificado em várias ocasiões, a última em setembro de 2010, Turquia e Botas se comprometem a reservar a totalidade de seus sistemas de infraestrutura para o uso exclusivo do Ministério do Petróleo iraquiano, que se guardava o direito de aprovar todos os usos das tubulações de 1.931 quilômetros de extensão.

Quando em novembro passado a Turquia anunciou a assinatura de uma série de acordos de cooperação com o GRK, um dos quais referente ao uso do oleoduto entre Iraque e Turquia, Bagdá protestou de imediato, afirmando que se tratava de uma violação de seu tratado com Ancara. O GRK é uma “região federal”, segundo o Artigo 117 da Constituição iraquiana de 2005, e como tal goza de certa autonomia em assuntos que não sejam de competência exclusiva do governo federal em Bagdá, segundo o Artigo 121 da Constituição.

As relações internacionais, incluídos os tratados, acordos e a política comercial, estão na esfera da competência exclusiva de Bagdá, segundo o Artigo 110 da Constituição. Além disso, o Artigo 111 estabelece que “o petróleo e o gás são de propriedade de todo o povo do Iraque em todas as regiões e províncias”. Assim, parece que o acordo de trânsito e distribuição de petróleo entre GRK e Turquia passou por cima das disposições constitucionais do Iraque.

Em um comunicado de imprensa, o governo de Bagdá também acusou, no dia 24, Ancara e Botas de violarem o Tratado de Amizade Mútua de 1946, que “exige da Turquia o cumprimento de uma rígida política de não ingerência nos assuntos nacionais iraquianos”. A crise nas relações bilaterais se previa desde novembro. Os Estados Unidos haviam pressionado o primeiro-ministro do GRK, Nechirvan Barzani, e o primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan, para evitarem contrariar ainda mais o governo iraquiano.

Em fevereiro, o ministro da Energia turco, Taner Yildiz, declarou que as exportações de Ceyhan não começariam sem a aprovação de Bagdá. Washington não desejava mais complicações na região, com a guerra civil síria em curso e o recrudescimento dos distúrbios internos entre sunitas e xiitas no Iraque.

Os interesses de Ancara também parecem aprovar uma relação de cunho empresarial com Bagdá. Horas antes de começarem as exportações de petróleo do GRK de Ceyhan, a Autoridade Reguladora do Mercado Energético da Turquia anunciou que, em 2013, o Iraque foi o maior exportador de petróleo para o território turco, com 32% do total, mostrando substancial alta frente a 2012, quando foi de apenas 19%.

Mas a superposição de interesses para por aí. Apesar de uma melhora temporária nas relações políticas em 2008, que levou à assinatura de 39 acordos, o entendimento entre Erdogan e seu colega iraquiano, Nouri al Maliki, degenerou em desconfiança e uma amarga troca de acusações, influenciada pela política sectária que afeta a região.

O primeiro enfrentamento foi em 2009, quando Bagdá divulgou uma ordem de prisão para seu vice-presidente sunita Tariq al Hashemi, acusado de planejar o assassinato de dirigentes xiitas, inclusive o de Al Maliki. Ancara se negou a extraditar Hashemi e lhe ofereceu asilo político.

Depois veio a crise síria. Erdogan, um sunita, apoiou aberta e materialmente os rebeldes contra o regime alauíta em Damasco, e se colocou do lado da Arábia Saudita e do Catar. Os alauítas pertencem à seita dos xiitas. Maliki, um líder xiita, que representa 60% da população do Iraque, não adotou uma postura aberta, mas se aproximou do Irã, aliado do presidente sírio, Bashar al Assad.

Mas o jogo de xadrez da Turquia tem duas dimensões adicionais. A primeira é a comunidade curda, em sua maioria assentada no sudeste de Anatólia, o que representa cerca de 18% dos 77 milhões de habitantes do país. O proscrito Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) busca a independência, frequentemente pela ação armada, o que provocou a morte de 40 mil rebeldes, civis e efetivos das forças de segurança.

Em 2012, Erdogan planejou um “processo de paz” pelo qual prometeu ao PKK liberdades que dariam lugar ao reconhecimento da identidade étnica curda. O PKK se retirou para as montanhas em território do GRK, e Barzani foi fundamental na manutenção de uma trégua entre os rebeldes e Ancara. Preservar essa situação é importante para o governante Partido da Justiça e do Desenvolvimento, com vistas às eleições presidenciais turcas previstas para agosto.

Mas uma boa relação entre Ancara e Erbil, capital do GRK, irrita Bagdá, que considera Barzani desleal com o governo federal e suspeita que o GRK, cedo ou tarde, exigirá a independência completa. Essa possibilidade também é motivo de preocupação para a Turquia, que teme um renovado sentimento separatista de seus próprios curdos. O sucesso financeiro do GRK, por meio das exportações de petróleo, paradoxalmente poderia acelerar essa perspectiva.

A outra dimensão nos planos regionais da Turquia é sua ambição de ser uma potência energética mundial, para situar o país como principal centro do Mediterrâneo oriental das exportações de petróleo e gás natural para a Europa. Depois de danificadas suas relações com a União Europeia, em 2009, a Turquia vê uma oportunidade de se converter em um sócio indispensável do Ocidente, não só na teoria, mas também na prática.

Sua capacidade geográfica para proporcionar a possibilidade de trânsito seguro para o petróleo e o gás natural do Iraque e, no futuro próximo, de Israel e Chipre para os mercados internacionais, apresenta uma vantagem estratégica de oportunidades que não se pode dar o luxo de perder.

A aparente boa relação de Erdogan com Rússia e Irã se baseia no pragmatismo e não em suas afinidades. Na verdade, Ancara quer minimizar sua dependência energética de Moscou e Teerã até 2023. A contagem regressiva já começou. Em 2013, reduziu suas importações de petróleo do Irã e da Rússia de 39% para 28% e de 11% para 8%, respectivamente.

Maliki, depois de sua vitória nas eleições iraquianas de 30 de abril, nas quais assegurou 94 das 328 cadeiras no parlamento, continuará no poder em Bagdá. Na falta de uma reconciliação, Ancara poderia ter de revisar suas ambições, uma vez que o Iraque já construiu rotas alternativas para suas exportações de petróleo, através de seus portos do sul e de Israel, enquanto no futuro mais distante a normalização da situação política na Síria oferecerá opções adicionais para os exportadores de gás e petróleo. Envolverde/IPS