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Ucrânia entre a violência e um descontentamento mais profundo

A polícia reprime manifestantes em Kiev. A preocupação pelos distúrbios se mantém. Foto: Natalia Kravchuk/IPS
A polícia reprime manifestantes em Kiev. A preocupação pelos distúrbios se mantém. Foto: Natalia Kravchuk/IPS

 

Kiev, Ucrânia, 24/2/2014 – Mesmo que se supere a persistente onda de violência na Ucrânia, o profundo descontentamento social gerado não desaparecerá de um dia para outro. Os protestos contra o governo começaram em novembro como resposta generalizada à decisão do presidente Viktor Yanaukovych de dar as costas à primeira fase de adesão à União Europeia (UE). Porém, logo se converteram em expressão mais profunda de descontentamento e frustração com o governo.

“Tudo começou com a decisão repentina de não assinar um acordo com a UE. Porém, se tratava de mais do que isso. As pessoas estavam cansadas do governo de Yanukovych”, explicou à IPS Valerii Drotenko, uma manifestante de 45 anos. Desde que Yanukovych assumiu o poder, em 2010, as liberdades civis foram vulneradas, os opositores sofreram repressão e a independência e integridade das forças da ordem desapareceram, segundo denunciam grupos de direitos humanos locais e internacionais.

Ao mesmo tempo, há uma crescente percepção pública de corrupção generalizada, favoritismo e nepotismo no governo. Os críticos denunciam que Yanukovych concentrava o poder político em seu gabinete e, ao mesmo tempo, está convertendo toda sua família em um fator de riqueza e domínio social. A tudo isto se soma que a economia nacional atravessa um momento difícil desde a crise financeira de 2008. Sua moeda está à beira da desvalorização, o déficit comercial e o orçamentário dispararam e o país está há 18 meses em recessão.

“As pessoas ficaram fartas de Yanukovych. A corrupção e a situação econômica provocaram a ira que levou a população às ruas. A situação seria mais civilizada se a economia estivesse melhor. Como estão as coisas, no momento só gera caos e ira”, disse à IPS a economista desempregada Masha Kostishyn, de 34 anos, moradora de Kiev. A situação econômica, somada à incapacidade de atrair investimento estrangeiro, deixou o país cada vez mais dependente do comércio com a Rússia, especialmente no leste do território, onde se concentra a maior parte da indústria pesada da Ucrânia.

Embora já exista uma aproximação cultural com a Rússia (um sexto da população ucraniana tem origem russa), isso deu ao Kremlin um impulso adicional para fortalecer sua influência política em Kiev. Mas esse processo afasta cada vez mais a população do governo, em particular no oeste, tradicionalmente mais favorável à Europa. A repentina mudança no final de novembro, quando o presidente voltou atrás com relação ao acordo e aparentemente deixou o futuro do país nas mãos de seu vizinho do leste, foi o ponto de inflexão para muitas pessoas que temiam que a Ucrânia se convertesse em um Estado títere do Kremlin.

A violência, e em particular o derramamento de sangue dos últimos dias, só aprofundaram o ressentimento contra o governo. No entanto, enquanto a oposição pedia a saída de Yanukovych (destituído no dia 22 pelo Parlamento), muitos manifestantes afirmavam não confiar muito nos possíveis sucessores. O principal partido da oposição, Patria, é considerado outro setor político corrupto.

“As autoridades são criminosas por natureza, mas a oposição é apenas a outra cara da mesma moeda”, opinou Drotenko. “Estavam muito a gosto em sua função de oposição ‘marionete’ ou de ‘decoração’, pagos pelos mesmos oligarcas do partido de governo e, como Yanukovych, ignorando a voz do povo. A maioria das pessoas que protesta em Kiev está longe de ser entusiasta partidária da oposição”, pontuou.

Outros assinalam o partido de ultradireita Svoboda, um dos principais movimentos que participam das manifestações. Alguns manifestantes acusam os dirigentes opositores de carecerem de unidade e coesão nos últimos meses para acabar com a crise nas primeiras semanas de protesto. “Sem dúvida, Yanukovych é estúpido e culpado por seus atos criminosos, mas a oposição também é culpada por não ter adotado medidas rápidas e decisivas no início das manifestações”, enfatizou Drotenko.

A violência dos últimos dias provocou uma enxurrada de respostas diplomáticas da UE, dos Estados Unidos e da Rússia. No dia 21, foi divulgado um acordo entre oposição, governo e diplomatas russos e da UE para acabar com a crise e realizar eleições antecipadas. Mas em Kiev há quem sinta frustração pelo fato de só agora surgir uma iniciativa diplomática. E as tensões mais profundas continuam

Olga Kovalchuk, professora de 37 anos, de Kiev, sintetizou esse sentimento: “Talvez enquanto se tratava de um conflito puramente político, antes de começar a violência, poderia ter sido útil UE e Rússia tomarem algum tipo de medida, mas agora não. Perderam a oportunidade”. Envolverde/IPS