Um balanço do Plano Nacional de Educação

Para Idevaldo Bodião, fim do ProUni e educação inclusiva são pontos positivos, mas a destinação de 7% do PIB é insuficiente para a educação.

[media-credit name=”José Leomar Souza” align=”aligncenter” width=”300″][/media-credit]
Peça-chave para a política nos próximos 20 anos, o PNE deveria entrar em vigor em janeiro, mas ainda não foi aprovado.
Para discutir o novo PNE, Carta na Escola procurou o professor Idevaldo Bodião, da Universidade Federal do Ceará (UFC), militante da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e um dos redatores do projeto do Conae. Bodião tem uma trajetória atípica em sua formação acadêmica. Formado em Engenharia Civil pela Universidade de São Paulo (USP), adaptou a carreira para o setor educacional, área em que se doutorou também pela universidade paulista. Depois, por motivos familiares, trocou São Paulo por Fortaleza, onde trabalha desde 1992. Foi secretário de Educação da capital cearense por dez meses em 2005, sob a gestão da prefeita Luizianne Lins (PT).

Nesta entrevista, Bodião critica as mudanças que o MEC fez no texto do PNE produzido pelo Conae, ressalta qualidades e defeitos do novo plano, e mostra preocupação com a força de grandes grupos empresariais da educação sobre os congressistas.

Carta na Escola: Como o senhor avalia o novo Plano Nacional de Educação? Setores governistas entendem que, apesar de ainda não aprovado, ele já está em vigência.

Idevaldo Bodião: O plano tem qualidades, mas o fato de acreditarem que já está em vigência me deixa mais preocupado- que feliz, uma vez que asfixia a grande virtude do PNE, que é ser um plano de Estado, não exclusivamente as aspirações de um governo. Como o PNE está desenhado, é possível perceber várias das políticas atuais em vigor implantadas por esta gestão.

CE: E o novo plano tem fragilidades?

IB: Sim, ao menos duas grandes. Primeira, este PNE em tese é construído como a convergência das conferências de educação municipais, estaduais e a nacional, um esforço que envolve três milhões de pessoas do país todo. Mas há um descompasso entre o que o Conae decidiu e o que está proposto no plano. Uma segunda fragilidade é que o novo plano é exageradamente tímido nas metas (nota: o anterior tinha 296, o atual tem 20). Há muita coisa agora que já estava no plano anterior e que não foi cumprida. Ou seja, estamos atrasados 20 anos e este governo legitima isso.

CE: Mas o que se argumenta é que o plano anterior foi um fracasso, por isto algumas metas devem ser repetidas.

IB: Bem, então essas metas significam uma confissão de própria lavra de que a gestão de Lula não cumpriu o PNE anterior. É bom lembrar que o plano esteve dois anos sob a gestão de Fernando Henrique Cardoso e oito na de Lula. Então, 80% do cumprimento que não existiu desse plano é da gestão de Lula, o qual Dilma substitui.

CE: Argumenta-se que o plano 2001-2010 surgiu natimorto, já que, para ser cumprido, ele precisava que 7% do PIB fosse destinado à educação, o que foi vetado pelo então presidente Fernando Henrique.

IB: Parece-me um exagero dizer que ele era natimorto. Ele nasceu em gravidez precária e estava em UTI com altíssimo risco de vida. Depois de dois anos poderia ter saído da UTI, mas não foi recuperado. Se ele sofreu vetos de FHC após a proposta ser aprovada na Câmara, esses vetos poderiam ter sido derrubados por Lula. Havia, em 2003, um movimento da Campanha Nacional do Direito à Educação pela derrubada dos vetos de FHC, tornando o plano vivo. Uma expressão que se diz muito sobre o PNE é que, sem esses recursos, ele se transformaria em uma carta de intenções. Foi o que ocorreu.

CE: Existe um compromisso do atual governo de destinar 7% do PIB para a educação. Esse número é suficiente?

IB: Quando foram encaminhadas as propostas para o primeiro PNE, a ideia é que fosse destinado 10% do PIB. Acabou-se fechando no Congresso que se aumentasse progressivamente até 7%, a partir de 2005. Se fosse aplicado como foi a proposta, teríamos 7% do PIB há pelo menos cinco anos, o que seria, aproximadamente, 70% a mais do que aplicamos hoje. Isso já teria saldado parte das dívidas de nossa herança perversa. Há uma macroprojeção do professor Otaviano Helene, da USP, que toma como meta as expansões de matrículas como propostas no plano (Ensino Médio, creches, formação de doutores, etc.). O cálculo diz que precisaríamos investir de 7% a 8% do PIB só para suprir o aumento de matrícula. O outro cálculo feito por ele é que, se fôssemos corrigir as condições de trabalho e salariais – e a meta 17 deste PNE agora prevê a valorização do salário do professor –, precisaríamos investir mais 7% ou 8% do PIB. Ou seja, se precisarmos ampliar e aumentar os salários, será necessário praticamente o dobro do valor destinado. Infelizmente, existe uma diferença entre trabalhar com o que é possível e trabalhar com o que é necessário, como entende o Conae. Parece que o ministro Haddad trabalha com o que é possível, apenas.

CE: Então, o senhor entende que talvez seja necessário trabalhar com cerca de 15% do PIB?

IB: Bem, veja o caso da Coreia do Sul, do Japão e de outros países desenvolvidos. Em algum momento de suas histórias, delegaram até 20% do PIB para a educação – a Coreia, se não me engano, chegou a 30%. Há quem defenda 10% do PIB já, o que não quer dizer que precisamos investir 10% do PIB até o fim dos tempos.

CE: E o que esse plano evoluiu em relação ao anterior?

IB: Melhorou em pelo menos três campos. Um é a educação inclusiva: o anterior prega a escola de especiais para especiais – de cegos para cegos, por exemplo. A discussão da educação inclusiva ganhou corpo nos últimos tempos e está visível no PNE 2011-2020. Outro é a importância dada à educação técnica, profissionalizante. Isso foi banido na gestão FHC e agora ganhou novo fôlego. O terceiro campo é bem importante: o ProUni, marca da gestão Lula, não aparece no novo PNE, um avanço corajoso do governo, que volta a comprometer os recursos públicos para a escola pública. Seguramente, causará frisson no Congresso, o lobby das instituições privadas causará enorme área de atrito na discussão.

CE: O ProUni foi assumido pelo governo como um paliativo para suprir os baixos índices da educação superior no Brasil, portanto.

IB: Exato, e essa foi a leitura do Conae também. Como forma de garantir a expansão de matrículas no Ensino Superior, essa foi uma das formas que o governo transferiu para a iniciativa privada, para que ela administrasse os recursos que a princípio deveriam ser públicos. A ideia do Conae é que o ProUni congelará o número de matrículas em 2014 e será extinto em 2018. Isso vale também para escolas de apoio que recebem aporte público, como a Apae. Vai valer a lógica do recurso público para a escola pública. A lógica me parece correta.

CE: Um dos problemas que o senhor cita em relação ao PNE é que o governo não acatou todas a proposições do Conae. Quais delas o senhor considera as mais importantes?

IB: Penso que a principal delas é não colocar 10% do PIB voltado para a educação, pelos motivos que já discutimos, e também pela proposta do custo aluno-qualidade. Parece que estamos investindo em arenas de futebol, aeroportos, e o que sobra fica para a educação. Outra: foram discutidas no Conae formas de aumentar a verba educacional, como destinar 50% do fundo social do pré-sal. O governo tem como se comprometer com isso.

CE: Outro ponto delicado para o cumprimento do PNE são as responsabilidades das esferas federal, estaduais e municipais. O governo enviou ao Congresso uma Lei de Responsabilidade Educacional, que serve como a Lei de Responsabilidade Fiscal. Ela é suficiente?

IB: A existência dela é bem-vinda. Infelizmente, estamos em um país onde há leis que “colam” e leis que não “colam”. Assim, temos um escudo com o qual defender esses preceitos, é uma base jurídica para cobrar o gestor. Há questões de base partidária. Cito um exemplo: houve, em janeiro, na Unicamp uma discussão sobre o PNE com representantes federais, estaduais e municipais. O representante paulista, professor João Palma, disse que São Paulo não se sente obrigado a acolher passivamente as escolhas do governo federal. Outro ponto: boa parte dos prefeitos não tem recursos para efetivar uma parte do plano, como a questão dos salários. No Ceará, temos 184 Municípios e talvez tenhamos dez cidades com algum fôlego administrativo arrecadador. Ou seja, a expansão de creches, o prefeito não tem como efetivar. É preciso ainda clarear mais a forma como o governo federal vai ajudar cada ente federado a aplicar o PNE.

CE: O PNE prevê a valorização do professor, mas há uma articulação para definir quanto. Em que pé está isso?

IB: A meta 17 prevê a valorização do professor de magistério e aproximar o salário desse profissional aos de escolaridade similar. A meta da Campanha Nacional pelo Direito à Educação prevê aproximar em 80% esse rendimento até 2015 e igualar aos de escolaridade similar (curso superior com quatro anos de formação) até 2020, que são as profissões de ensino superior com quatro anos de formação. O Supremo Tribunal Federal entendeu, em abril, como constitucional a lei que prevê um piso nacional salarial para professores. Essa lei, de 2008, dava dois anos – portanto, 2010 – para que todas as redes tivessem planos de cargo e carreira. Mas isso ainda não acontece.

CE: O PNE agora está no Congresso para ser discutido. Que mudanças ainda podem ocorrer?

IB: A ameaça dos lobbies dos grandes grupos empresariais é absolutamente real. Há instituições filantrópicas na área de educação especial, o que pode enfraquecer a proposta de educação especial inclusiva. Outro, fortíssimo, são os grandes cursos que tentam manter a destinação de recursos públicos para a esfera privada, como o ProUni. São questões a se ficar de olho no Congresso.

* Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.