Este segundo semestre será marcado por mais um embate em relação ao novo Código Florestal. Ambientalistas e ruralistas armam-se com argumentos e buscam influir os senadores que vão analisar o projeto de lei – já aprovado na Câmara dos Deputados em uma das mais turbulentas sessões da recente história do Congresso Nacional. Para os cientistas, o Senado terá um papel crucial de melhorar o texto, inserindo nele aspectos técnicos que foram solenemente ignorados no trâmite do projeto entre os deputados. “Esperamos um debate mais iluminado desta vez”, diz Antônio Donato Nobre nesta entrevista exclusiva ao Fórum Amazônia Sustentável. Doutor em Ciências da Terra e especialista em Amazônia, ele defende que a academia assuma – com humildade – seu papel na comunicação do conhecimento para melhor preparar a sociedade para o debate que se avizinha. Boa leitura!
O senhor acredita que o Senado terá serenidade – e tempo – para agregar o vasto conhecimento científico disponível hoje no Brasil ao texto do novo Código Florestal, aprovado na Câmara sem que os deputados levassem em conta o que os cientistas tinham a dizer?
Quando fomos às duas audiências públicas no Senado, em nome do Grupo de Trabalho do Código Florestal, formado por representantes da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e da Academia Brasileira de Ciências (ABC), os senadores demonstraram receptividade ao que tínhamos a dizer. Mostraram interesse em relação a uma abordagem mais científica em relação à reforma do Código Florestal. Demonstração disso é que o Senado aprovou o requerimento para que a Comissão de Ciência e Tecnologia (CCT) da casa também participe da análise do tema nessa nova etapa. No entanto, tudo vai depender de quem será nomeado relator na Comissão de Ciência e Tecnologia. Se os senadores quiserem registrar na história seu compromisso com os valores republicanos e com o futuro, indicarão para relator na CCT alguém efetivamente isento de vieses, que possa compilar as contribuições científicas de forma independente e objetiva.
E qual foi o tratamento dado à academia na Câmara dos Deputados?
Fomos recebidos de modo civilizado tanto pela bancada ruralista quanto pela bancada ambientalista, que enalteceram a importância do papel dos cientistas no aperfeiçoamento do texto da reforma do Código Florestal. Fizemos um esforço imenso, produzimos uma publicação em que apontamos, ponto por ponto, as consequências das alterações propostas pelo relator Aldo Rebelo e fomos mais adiante, com considerações propositivas para um novo código florestal inteligente e eficiente, baseado nas mais novas e inovadoras tecnologias. Mas, na prática, essas recomendações foram solenemente ignoradas. Eu diria até que foram violadas, considerando o que se viu no relatório final que foi enviado ao plenário, e também na gravidade do que foi incluído na emenda da anistia a desmatadores aprovada.
Depois de passar pelo Senado e regressar à Câmara – considerando que as recomendações sejam agregadas –, o texto possivelmente mais equilibrado do novo Código Florestal não poderá sofrer cortes importantes e perder o caráter mais técnico que se espera que o Senado incorpore?
Vamos supor que o Senado vai melhorar o texto, aproveitando os aportes científicos para caminhar na direção da colaboração e sinergia, de atender os interesses de maiores parcelas da sociedade, sem ferir os direitos das minorias. Com isso, o espaço político para uma regressão do texto na Câmara deve ficar menor. Foi o que aconteceu com a lei da Ficha Limpa quando tramitou no Congresso Nacional. Por mais que alguns parlamentares de ficha suja estivessem ameaçados em seus interesses, não aprovar a lei naquele momento seria suicídio político. O que deve fazer a diferença neste caso (do Código Florestal) é uma demonstração inequívoca para a sociedade de que o dilema entre produção agrícola e conservação dos ecossistemas é falso. E isso já foi demonstrado cientificamente. A melhoria do texto no Senado pode e deve incorporar as evidências de que conservar a biodiversidade é investimento de alto retorno e não um custo como alguns querem fazer parecer que é. Será que a Câmara será contra o aumento sustentável da produção agrícola, lastreado na melhor ciência, e com garantias comerciais para o futuro?
Qual será a estratégia dos cientistas desta vez?
Creio que devemos ser otimistas e estarmos abertos ao diálogo. Acredito também que a comunidade científica tem uma responsabilidade importante no esclarecimento dos fundamentos cruciais que farão parte desse diálogo. Mais do que convencer os legisladores, visando à criação de joias legais – que podem terminar seus dias empoeiradas em prateleiras burocráticas –, parece essencial que estejamos todos esclarecidos. Uma lei boa é uma lei compreendida e respeitada. O trabalho de busca da consciência precisa ser feito tanto junto aos agricultores, quanto junto aos consumidores. E os parlamentares podem ter um papel importante aí, ajudando a sociedade a avançar. O que se vê hoje é que, apesar da mobilização em torno do tema, poucas pessoas compreendem em profundidade o que está em jogo. Mas os brasileiros, apesar de não desmerecerem a potência agrícola, têm, intuitivamente, manifestado sua clara opção contra medidas que possam pôr em risco as florestas brasileiras.
Durante o processo de discussão do Código Florestal, os cientistas foram criticados por demorarem a dar suas colaborações. A academia cochilou?
Reitero aqui o que temos dito: a pesquisa científica e tecnológica feita no Brasil é financiada essencialmente por recursos públicos. Portanto, a colaboração da ciência com os interesses da sociedade é um imperativo ético. A história tem registrado que a SBCP e a ABC nunca se omitiram das questões relacionadas com a ciência. Entretanto, na gestação das atuais alterações propostas para o Código Florestal, nem SBPC, nem ABC, tampouco outras organizacões civis representativas da comunidade científica, foram convidadas para a mesa de discussões ou, o que teria sido melhor, foram instadas a fazer aportes científicos qualificados. Tentar entrar sem convite num debate essencialmente político e com fortes conotações ideológicas poderia ter sido interpretado como expressão de mais um grupo de interesse, comprometendo nisso a isenção e objetividade que convém a uma contribuição da ciência para a política pública. Ciência e tecnologia não são uma panaceia para a solução de todos os problemas do país, mas certamente oferecem grande potencial para suportar a busca lógica de soluções inovadoras, inteligentes e apropriadas. Precisamente, para não se omitirem, a SBPC e a ABC tomaram a iniciativa conjunta de fazer um aporte científico qualificado e independente.
O senhor acredita que a academia tende a ficar mais atenta às demandas da sociedade e se posicionar de modo mais ágil daqui para frente?
Também reitero que a SBPC e a ABC são, por estatutos e regimentos, instituicões isentas de viés político-partidário. À comunidade científica compete desenvolver novos conhecimentos que possam ser úteis para a sociedade ou que possam inspirar e fazer evoluir a consciência humana. Em uma sociedade democrática madura, o saber potencializa o processo decisório, inspirando e instruindo os representantes do povo a encontrarem as melhores soluções na arte da política. O papel da SBPC e da ABC é mobilizar competências na sociedade que possam embasar cientificamente o diálogo para construção de um novo Código Florestal brasileiro, participando de agendas plurissetoriais, levantando informacões qualificadas que, se aproveitadas, trarão benefícios para toda a sociedade. Acrescento ainda que existem duas limitações para uma postura mais ágil das entidades representativas da ciência. Primeiro é a cultura mundial e já envelhecida de uma ciência reducionista, individualista e competitiva, que precisa evoluir para uma ciência holística e colaborativa. E a segunda é a ausência real de demandas colocadas pela sociedade para os cientistas, talvez pelo próprio desestímulo das portas fechadas. Como cientistas, temos que perder o medo de descer à rua e nos misturar, entendendo que sem a colaboração dos cidadãos, por meio de seus impostos, a ciência como tal não existiria. Pelo lado do cidadão, é importante popularizar um novo conceito de direito fundamental da pessoa humana: o direito ao saber!
Qual é a agenda das entidades representativas da ciência brasileira para outros temas como mudanças climáticas, perda de biodiversidade, desmatamento, degradação ambiental, lixo, contaminação dos recursos hídricos?
O engajamento dos cientistas no tema Código Florestal rendeu motivações importantes na comunidade científica, o que ficou evidente na última reunião anual da SBPC. Estamos falando de dezenas de milhares de professores e pesquisadores espalhados por universidades, institutos e centros de pesquisa. Com o amadurecimento do envolvimento da ciência em temas candentes, é de se esperar que todos esses tópicos se beneficiem de um engajamento mais ativo e responsável de cientistas individuais, e com isso teremos reflexos nas agendas de nossas associações, por demandas de associados. Meu palpite é que precisamos, antes de tudo, de humildade para contemplar a realidade em toda sua complexidade e nos colocarmos a serviço da sociedade, sem presunção. Depois, precisamos dedicar parte importante de nossa energia na simplificação inteligente do conhecimento científico, tornando-o assimilável e útil para o cidadão. Por fim, creio que podemos e devemos voltar a sonhar, refletir profundamente sobre os temas para encontrarmos soluções para os problemas complexos que temos diante de nós.
* Publicado originalmente no site do Fórum Amazônia Sustentável.