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“Um julgamento na Suíça, um passo contra a impunidade na Guatemala”

Philip Grant. Foto: Cortesia do entrevistado
Philip Grant. Foto: Cortesia do entrevistado

Genebra, Suíça, 3/6/2014 – Erwin Sperisen foi chefe máximo da Polícia Nacional Civil (PNC) da Guatemala entre 2004 e 2007, quando deixou o país e se estabeleceu na Suíça. Em agosto de 2010, as autoridades guatemaltecas expediram uma ordem de prisão internacional acusando-o, entre outras coisas, de execuções extrajudiciais nas prisões de Pavón e Infiernito.

As autoridades do cantão suíço de Genebra o detiveram em 31 de agosto de 2012, mas sua extradição para a Guatemala não foi possível porque também possui passaporte suíço. Agora é submetido a julgamento na Suíça com uma possível condenação à prisão perpétua, num julgamento que começou no dia 15 de maio e tem previsão de estar concluído no dia 6.

Sperisen, com cidadania suíça e guatemalteca, é julgado em Genebra pelo assassinato de dez prisioneiros em 2005 e 2006, quando era diretor-geral da PNC. Os testemunhos contra ele foram fornecidos pela Trial (Track Impunity Always), uma organização não governamental suíça que busca justiça para os crimes internacionais vinculados aos direitos humanos. O diretor da Trial, Philip Grant, conversou com a IPS sobre a importância do caso.

IPS: O que está em jogo nesse julgamento?

PHILIP GRANT: A capacidade do sistema judicial suíço para julgar fatos ou delitos cometidos a milhares de quilômetros de distância, em um contexto e cultura completamente diferentes. A Suíça não realizava um julgamento penal desse tipo desde 2000, quando um prefeito de Ruanda foi condenado a 14 anos de prisão por participação no genocídio e em crimes contra a humanidade. Em termos mais gerais, há uma tendência mais ampla que empurra os Estados a assumirem os casos nos quais os crimes são cometidos no exterior e os vínculos com o país são muito fracos ou até mesmo não existam, salvo que o suspeito é surpreendido no território. A base jurídica é a jurisdição universal. O direito internacional, em particular os convênios de Genebra e a Convenção Contra a Tortura, exige que a comunidade internacional investigue e julgue esses crimes.

IPS: Essa é uma nova tendência?

PG: Não, mas cresce rapidamente. Houve dezenas de casos a partir do processo (do criminoso de guerra nazista alemão) Adolf Eichmann em Israel em 1961. Depois, em 1988 o (ditador chileno) general Augusto Pinochet (1973-1990) e agora são cada vez mais. Na Grã-Bretanha, o Ministério do Interior indica que centenas de suspeitos entraram no país procedentes de Afeganistão, Bálcãs, Serra Leoa, Sri Lanka e outros lugares. Nenhum outro país reúne dados semelhantes, mas a Holanda informou que dezenas de supostos genocidas ruandeses estão em seu território, e apenas na França as ONGs apresentaram mais de 25 denúncias penais contra suspeitos ruandeses. Vários países instituíram unidades de crimes de guerra, como a Holanda, que conta com 35 investigadores que realizam detenções periódicas. A unidade francesa foi criada em 2012 e este ano seu primeiro julgamento terminou com a condenação de um homem de Ruanda a 25 anos de prisão.

IPS: Isso se limita aos países ocidentais?

PG: Não. Atualmente são investigados casos no Senegal contra Hissène Habré, um cidadão do Chade, e, na África do Sul, contra suspeitos do Zimbábue. A Argentina tenta investigar casos vinculados aos crimes do ditador Francisco Franco (1939-1975) na Espanha. Talvez muitos países não estejam preparados para investigar, mas a maioria possui um código penal que lhes capacita investigar e julgar os crimes internacionais. Outra tendência é que as autoridades fiscais do Norte também começam a julgar seus próprios cidadãos e não apenas pessoas do Sul em desenvolvimento.

IPS: Isso também se refere aos crimes econômicos?

PG: Timidamente. Na Suíça, o promotor-geral iniciou investigação penal sobre a companhia suíça Argor, uma das mais importantes refinarias de ouro do mundo, por sua suposta cumplicidade no saque de ouro na República Democrática do Congo. Na França, a promotoria investiga uma empresa que vendeu material de vigilância para a Líbia, o que permitiu ao regime anterior líbio localizar e torturar opositores. A ideia é julgar não só os autores dos crimes, mas também os que lucram com eles. A Holanda investigou a empresa local Riwal, que ajudou a erguer o muro que separa Israel da Palestina, em uma clara violação do direito internacional humanitário. A polícia holandesa revistou seus escritórios. O caso foi suspenso posteriormente, mas a firma havia encerrado seus negócios relacionados ao muro. Quando foi divulgada a decisão, outra companhia que trabalha nos territórios ocupados parou de colaborar com Israel, por medo de violar o direito internacional.

IPS: Sperisen poderia ser julgado na Suíça, mesmo se não fosse cidadão suíço?

PG: Se não se tem um vínculo estreito com um país, como é o caso da nacionalidade, a fronteira para arriscar o julgamento é o nível de crimes cometidos. Para roubo de carro não existe jurisdição universal. Você pode se converter em objeto da jurisdição universal se cometer violações de direitos humanos que constituem crimes internacionais – como genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. O sistema não foi muito utilizado no passado, mas agora cada vez mais ONGs trabalham nesse tema. Na Suíça, a Trial é a única que investiga esses casos no terreno e apresenta denúncias.

IPS: Quais as principais dificuldades nesse tipo de procedimento?

PG: A proteção das testemunhas e das vítimas. Dezenove pessoas foram acusadas de execuções extrajudiciais em relação com Sperisen. Um advogado foi assassinado, pelo menos uma das testemunhas foi assassinada e a mãe de uma das vítimas poderia estar em perigo. Ela é a única demandante nesse caso. Embora se trate de dez casos de execuções extrajudiciais e existam dez famílias que poderiam ter apresentado denúncias, alguns tinham medo e outros vivem no estrangeiro. O Poder Judiciário na Suíça enfrenta dificuldades para ordenar medidas de proteção a serem aplicadas na Guatemala.

IPS: Como se trabalha com as organizações na Guatemala?

PG: Mediante o trabalho com as ONGs e os defensores de direitos humanos do país, ou com a Procuradoria dos Direitos Humanos, pudemos reunir provas contra Sperisen. A Organização das Nações Unidas (ONU) instaurou a Comissão Internacional Contra a Impunidade na Guatemala para investigar os crimes cometidos pelas forças de segurança ilegais porque os investigadores nacionais eram considerados muito corruptos e pouco confiáveis. Também conversamos com a Comissão, embora sem poder compartilhar os resultados de suas investigações. Apesar de apresentarmos a denúncia inicial com outras ONGs, não somos uma das partes interessadas no caso. O que fizemos, por exemplo, foi contribuir com a informação às autoridades e as colocamos em contato com as testemunhas. Durante o julgamento, apenas a demandante estará representada no tribunal. Se Sperisen for condenado, ela poderá pedir uma reparação. A Trial apresentou muito outros casos, e alguns ainda estão sob investigação. Outros foram encerrados. Quando George Bush anunciou que viria a Genebra em 2011, começamos a trabalhar em uma denúncia de tortura. Em certo momento, isso se tornou público e de repente ele decidiu não vir. Atualmente também investigamos um pequeno número de casos de cidadãos dos países ocidentais.

IPS: O veredito será conhecido no dia 6. Quais serão as consequências desse caso?

PG: O superior direto de Sperisen, o ex-ministro do Interior, Carlos Vielmann, está sendo investigado na Espanha. Se Sperisen for condenado, será iniciada uma forte pressão para que Vielmann também seja julgado naquele país. Imagino que as consequências também serão sentidas na Guatemala. Suponho que o atual chefe de polícia guatemalteco esteja acompanhando o julgamento. Se Sperisen for condenado, aposto que haverá mudanças na forma como a polícia guatemalteca opera. Mas, qualquer que seja o veredito, será mais um passo na luta contra a impunidade em todos os âmbitos. Envolverde/IPS