Há 2000 anos, Platão escrevia a República apresentando seu ideal de sociedade ordenada pela filosofia, uma sociedade comunista, formada por cidadãos livres, racionais, e esclarecidos, cidadãos que deviam ser felizes. Há 500 anos, Thomas More escrevia a sua Utopia, descrevendo também uma sociedade ideal e inexistente no mundo, harmoniosa, comunista, de pessoas livres, esclarecidas, amadurecidas. Ambas as concepções eram absolutamente irrealistas, incompatíveis com a natureza humana, no dizer do próprio More, e ficaram como referências filosóficas impraticáveis. Mencione-se, entre parênteses, como algo significativo do pensamento corrente da humanidade de suas épocas, que as duas grandes quimeras admitiam a escravidão e a guerra.

O sentido de organização utópica da humanidade reacendeu-se a partir da obra de Kant que, há 200 anos, elaborou sua Filosofia da Razão, sustentando que o ser humano é um fim em si mesmo e, consequentemente, nenhum homem pode, para realizar seus fins, utilizar outro homem como meio, abrindo o caminho para as concepções de Marx. E mais, ele previu pela primeira vez a extinção da guerra, pela exaustão dos povos guerreiros, e a efetivação da paz perpétua no mundo. Essa exaustão seria física, psicológica e econômica.

Outro parênteses: Kant conhecia bem a ciência do seu tempo, e tinha uma fé inabalável nesse fruto da razão pura, mas não conhecia a tecnologia, o espantoso desenvolvimento da ciência pela razão operacional. Marx que sucedeu a Hegel e veio 50 anos depois de Kant, Marx então, há 150 anos, teve a primeira intuição clara do poder da tecnologia que, movida pelo capitalismo, viria a desmanchar no ar tudo que até então era tido como sólido.

No século passado, há menos de cem anos, foram descritas outras sociedades fictícias, não mais no sentido de modelo ideal mas de previsão realista de um futuro inevitável, marcado pelo desenvolvimento tecnológico aplicado ao controle social: Admirável Mundo Novo de Huxley e 1984, de Orwell. Peças elaboradas no momento do grande confronto ideológico planetário, que desapareceram também do cenário político, ficando apenas como referências literárias, como obras de dois grandes escritores dos mil e novecentos.

A ideia de Kant e a análise de Marx, entretanto, continuam vivas, ultrapassaram sua época e parecem hoje ainda bem atuais. E a humanidade de hoje dá mostras inequívocas de uma vontade de renovação dos paradigmas políticos e econômicos no sentido apontado por eles: vontade de um Mundo Novo, livre das pestes da guerra, da exploração do homem pelo homem e da destrutividade do capitalismo que agora ameaça o planeta como um todo. A ebulição das ruas da Europa e do mundo árabe são os indícios mais evidentes, mas o esgotamento financeiro e a radicalização política dos Estados Unidos não são menos indicativos desse mal-estar que demanda novos paradigmas.

Evidentemente, a guerra prossegue com uma presença no mundo que parece infindável e inevitável. Entretanto, aquela configuração de exaustão política, psicológica e econômica a que se referiu Kant, como fundadora da paz mundial, parece estar bem à vista de quem tiver olhos para ver, precisamente nas partes mais ricas e armadas da terra, sob a forma de manifestações maciças de descontentamento. Inequivocamente, o amadurecimento desse processo em que a política vai abrindo campo para uma participação popular mais larga e efetiva, as manifestações expressivas dessa presença do povo nas ruas acabarão por exigir o fim das guerras.

Essa participação popular é ainda incipiente, restrita a usuários da internet, e faz-se de forma desorganizada, por vezes caótica. É um processo em começo, todavia: dentro de algumas décadas estará ampliado e amadurecido, perto da universalização, estará organizado e logo institucionalizado. E então, com certeza, será muito difícil para qualquer governo, tomar a iniciativa de uma guerra. Claro que pequenas refregas de fronteira e atos de terrorismo praticados por grupos extremistas possivelmente ainda ocorrerão, mas a solução das relações conflitivas entre nações terá de ser eminentemente política, não violenta, regulada e mediada por um organismo internacional respeitado, que só pode ser a ONU.

A ação reguladora e mediadora da ONU se estenderá, obviamente, ao controle da destruição e da poluição em escala mundial, isto é, à preservação do planeta em todas as suas dimensões. Então, sim, e só então, o mundo poderá contar com dispositivos eficazes de sustentação ecológica, extremamente difícil porque terá de impor alguma restrição sobre o crescimento das economias nacionais mais ricas, esbanjadoras de energia. O capitalismo terá de resolver este complexo problema para o seu funcionamento, e o caminho mais provável aponta para a adoção de economias mistas, onde Estado e mercado estarão presentes dividindo funções e responsabilidades.

A reforma da ONU, com a ampliação e melhoria da representatividade do seu Conselho de Segurança, é condição essencial, sine qua non, para a superação do seu atual estado de inoperância, e a sua capacitação para realizar esse novo ambiente mundial livre da guerra e da destruição. Sintoma evidente da ineficácia flagrante da ONU de hoje é a fome que está matando milhões de seres humanos na Somália, para vergonha da humanidade.

O Brasil, que devia ter tido, desde o início, um assento permanente no Conselho de Segurança, pela própria regra da sua constituição, pois foi uma nação que participou com efetivos militares da guerra contra o nazi-fascismo, o Brasil tem muito a contribuir na formação desse novo mundo sem guerra e sem destruição ambiental, seja pela sua grande tradição de negociação internacional, sua reconhecida vocação de potência da paz, seja pela sua bem-sucedida experiência de implantação e gestão de uma economia mista, seja, ainda, pela sua vivência na institucionalização de mecanismos de participação da sociedade nas decisões de governo.

Esta é, verdadeiramente, outra contribuição importante que nosso país pode dar à política mundial: a apresentação das nossas experiências exitosas de participação da sociedade organizada nas decisões sobre políticas públicas em geral. São muitas as nossas realizações dessa gestão participativa no âmbito local, municipal, mas até mesmo na dimensão nacional, com a criação dos diversos conselhos de políticas setoriais e do grande e amplo Conselho de Desenvolvimento que têm influenciado decisões nacionais de grande relevo, como foi, recentemente, a política de fomento da indústria.

Enfim, arrisco-me a uma declaração de otimismo tomado como ingênuo ou mesmo infantil, pendor do qual nunca me arrependi, mas o fato é que consigo hoje captar vibrações no campo de forças políticas precursoras de um Mundo Novo, caracterizado pela paz duradoura, pela preservação ambiental e pela implementação de uma democracia com elevado nível de participação direta e organizada dos cidadãos, uma democracia mais democrática e, por isso mesmo, mais resistente à corrupção.

* Roberto Saturnino Braga é colunista de Plurale, colaborando com artigos sobre sustentabilidade. Ex-senador, com experiência pública de toda a vida, coordenador da ONG Instituto Solidariedade Brasil, autor de vários livros: História do Rio em Dez Pessoas, Contos, Record, 1994, Geografia do Rio em Quatro Posições, Contos, Record, 1997, Contos do Rio, Contos, Record, 1999 (Prêmio Malba Tahan, da UBE), Quarteto, Romance, Record, 2003, Entre Séculos, Textos Políticos, Contraponto, 2004, Contos de Réis, Contos, Record, 2005, Mudança de Época, Textos Políticos, Publit, 2007, Os Quatro Contos do Mundo, Contos, Record, 2008, e No Curso das Ideias, Política, Editora Publisher Brasil, 2009.

** Publicado originalmente no site Plurale.