Málaga, Espanha, 17/6/2014 – Após a abdicação do rei Juan Carlos I, seu filho Felipe de Borbón assumirá no dia 19 o reinado da Espanha, afetada por uma crise econômica, social e política, na qual a maioria da população quer decidir sobre o modelo de Estado e de monarquia parlamentar, vigente há quase quatro décadas mas que vive seu maior desprestígio.
“Nem a monarquia nem os políticos têm empatia com as pessoas. O rei é uma figura prescindível. Se deveria em algum momento convocar um referendo para ouvir os cidadãos”, disse à IPS o desempregado Jesús Sánchez, de 39 anos, mesma quantidade de anos em que Juan Carlos I esteve à frente da Coroa.
O ainda rei em exercício anunciou sua abdicação no dia 2 e esta será efetivada amanhã. No dia seguinte o parlamento fará a proclamação de Felipe VI como novo monarca.
Segundo pesquisa divulgada no dia 8 pelo jornal El País, 62% dos espanhóis entrevistados são partidários de que “em algum momento” ocorra uma consulta sobre o modelo de Estado. A pesquisa também aponta que 49% dos espanhóis escolheriam uma monarquia com Felipe VI, de 46 anos, como rei contra 36% que preferem uma república.
“Não nos deixam respirar. Rei morto, rei posto. É uma vergonha, uma ditadura encoberta”, lamentou Arantxa Rementería, enquanto participava, junto com seu marido, no dia 7 deste mês, de uma manifestação pelo referendo na cidade de Málaga, convocada por partidos de esquerda em diversas localidades espanholas.
Mãe de duas jovens, uma estudante de medicina, “que não veio porque tinha provas”, e a outra cirurgiã com “excesso de trabalho e salário precário”, Rementería perguntou “que futuro espera pela juventude neste país?”. A Espanha, com 46 milhões de habitantes, tem 25,9% de sua população ativa desempregada, a metade jovens.
Precisamente, a juventude que atualmente emigra em busca de trabalho e não participou do referendo da Constituição de 1978 com que se fechou a transição para a democracia após a ditadura de Francisco Franco (1939-1975), é a que mais ergueu sua voz nas manifestações espanholas gritando palavras de ordem como “Vamos todos lutar, referendo popular”, conforme a IPS comprovou.
Essa Constituição estabelece que a Espanha é uma monarquia parlamentar, na qual o rei representa uma chefia de Estado meramente representativa e sujeita aos desígnios do parlamento e do governo.
“As pessoas querem ver no novo rei uma pessoa que sabe o que acontece no país, estará pendente de como maneja os processos abertos por corrupção contra membros da família real”, disse à IPS o analista político Antón Losada. Assentado na comunidade da Galícia, Losada acredita que Felipe VI deveria mediar por uma “reforma da Constituição que a adapte aos problemas e às necessidades de hoje”.
O Congresso dos Deputados aprovou, no dia 11, com 85% dos votos, uma lei orgânica que permite a abdicação de Juan Carlos I, de 76 anos, que cede a soberania ao seu filho que se converterá no monarca Felipe VI. Grupos minoritários de esquerda e nacionalistas votaram contra. Hoje o Senado se pronunciará sobre o mesmo texto.
“A abdicação mostra a decomposição do regime surgido em 1978 com a Transição e o descrédito da monarquia, do bipartidarismo e do poder judicial”, afirmou à IPS a especialista Esther Vivas, integrante do Centro de Estudos sobre Movimentos Sociais, da Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona.
Juan Carlos I abdicou dias após as eleições no Parlamento Europeu de 26 de maio, que significaram uma grande derrota para o bipartidarismo representado pelo governamental e direitista Partido Popular (PP) e pelo Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE). Os dois expoentes do bipartidarismo não alcançaram nem metade dos votos, e o surgimento de novas forças políticas alternativas como o partido esquerdista Podemos, que conseguiu cinco eurodeputados e 8% dos votos em sua estreia política.
A sucessão na monarquia parlamentar ocorre, então, com o desgaste das duas grandes formações políticas e diante do desafio independentista da região da Catalunha “que começa a ser imitado no País Basco”, disse à IPS o analista político Jaime Pastor, especializado em movimentos sociais e professor na Universidade Espanhola de Educação à Distância.
O presidente da Generalitat da Catalunha, Artur Mas, convocou uma consulta, marcada para 9 de novembro, para decidir se a comunidade se converte em um país soberano, o que o governo central e a maioria do parlamento rechaça com o argumento de que é inconstitucional. “O auge da soberania da Catalunha coloca contra as cordas o regime surgido em 1978”, advertiu Vivas em conversa telefônica desde Barcelona.
Enquanto uns veem a monarquia como algo anacrônico e desejam uma república, outros como Mari Félix Gutiérrez, uma idosa a quem a manifestação de Málaga pelo referendo surpreendeu sentada em um banco, realçam a figura do rei e a instituição monárquica. “Sou monarquista e como eu há muitos. Juan Carlos teve um papel importante e seu filho Felipe está muito preparado e fará melhor”, disse à IPS, mas sem se opor a um referendo, “se as pessoas assim quiserem”.
Em uma aparição na televisão no dia em que abdicou, o rei justificou a substituição no trono dizendo que “uma nova geração reclama com justa causa seu papel protagonista” e afirmou que seu herdeiro “encarna a estabilidade, que é sinal de identidade da instituição monárquica”.
Mas Felipe terá que recuperar a boa imagem da monarquia manchada por escândalos de vários tipos, desde a caça de elefantes de seu pai em Botsuana até a acusação contra sua irmã, infanta Cristina, e seu cunhado, Iñaki Undangarín, acusado de desvios de fundos públicos em seu benefício, no caso de corrupção conhecido como Noós.
“Que falta nos faz a monarquia? É um gasto desnecessário”, disse à IPS a ativista Charo García, integrante dos chamados “yayoflautas”, coletivo de pessoas maiores de 45 anos surgido do Movimento Indignado 15 de Maio (15M). Yayos é como muitas crianças chamam seus avós na Espanha.
García, que carregava um cartaz onde se lia “Referendo” na manifestação que percorreu várias ruas centrais de Málaga, criticou o estilo de vida da realeza em contraste com uma sociedade empobrecida com despejos diários de famílias por não pagamento de hipotecas e crescente desigualdade entre ricos e pobres.
Felipe VI assume a chefia de um Estado asfixiado pelos efeitos da crise econômica. Juan Torres, analista econômico, disse à IPS que ainda não se pode falar de recuperação na Espanha, porque o consumo não se reativa e o desemprego afeta quase seis milhões de pessoas. “Caberia pedir ao novo monarca que mude a agenda de seu país e. em lugar de agente comercial das grandes empresas espanholas, trabalhe para o conjunto dos espanhóis”, acrescentou. Envolverde/IPS