Em vigor há dois anos, uma nova regulamentação europeia permitiu 0,9% de organismos geneticamente modificados nos produtos orgânicos e o adiamento da aplicação de leis referentes ao uso de agrotóxicos. Aliada à produção em grande escala e por empresas do setor alimentício, a medida colocou em xeque a própria definição.
Em junho de 2009, um técnico da cooperativa Terres du Sud, no sudoeste da França, organizava uma jornada de visitas às criações intensivas de frangos orgânicos. O desempenho das instalações, entregues prontas para o uso, assim como os créditos e o apoio público propostos visavam a converter os agricultores convidados. Para garantir o fornecimento aos grandes distribuidores e às empresas de alimentação (1), as poderosas cooperativas agrícolas mergulham, agora, numa concorrência selvagem para a criação de frangos acima de qualquer suspeita. Elas se beneficiam da nova regulamentação europeia, que permite ao criador produzir até 75 mil frangos de corte orgânicos por ano e não limita o tamanho das criações orgânicas de galinhas poedeiras.
Essas cooperativas perceberam que poderiam ganhar muito dinheiro com um tipo de agricultura que, por muito tempo, elas haviam criticado. “Os produtores perderam toda a autonomia”, conta Daniel Florentin, membro da Confédération Paysanne (Confederação Camponesa), ex-criador de aves orgânicas, que trabalhou com a cooperativa Maïsadour. “Eles estão endividados por pelo menos 20 anos e devem fornecer toda a sua produção para a cooperativa que se comprometer a comprá-la, sem preço pré-determinado.”
Desde 1999, devido a problemas de saúde e relacionados ao meio ambiente, o consumo de produtos alimentares orgânicos vem crescendo 10% ao ano na França. Em 2009, apesar da crise, o volume de negócios de produtos orgânicos aumentou 19% (2). Este mercado, por muito tempo marginal, tornou-se relevante e foi ocupado pelos grandes distribuidores, que respondem atualmente por mais de 45% das vendas. Entretanto, em 2009, apenas 2,46% da superfície agrícola usada era destinada a produtos orgânicos. Para atender à demanda dos consumidores, os atores que dominam o mercado escolheram duas soluções: um apelo maciço às importações e o desenvolvimento de uma agricultura orgânica industrial e intensiva.
A noção de agricultura orgânica nasceu na Europa em reação à agricultura química e produtivista que se generalizou após a Segunda Guerra Mundial. No início dos anos 1960, uma rede de pequenos agricultores orgânicos e de consumidores criou a Nature & Progrès (N&P). A associação atraiu grande parte das populações urbanas, que decidiu voltar à terra e tecer relações com os diferentes movimentos ecologistas e políticos, como o sindicato Paysans-Travailleurs (Camponeses-Trabalhadores) nos anos 1970 e a Confederação Camponesa e os antiOGM (Organismos Geneticamente Modificados) a partir dos anos 1990. Feito isso, a Nature et Progrès adotou alguns princípios: rejeição a produtos sintéticos, tratamentos naturais, diversificação e rotação das culturas, autonomia das explorações, energias renováveis, defesa dos pequenos camponeses, biodiversidade, sementes orgânicas, etc. Para dar um novo sentido ao consumo e recriar relações sociais, a venda dos produtos orgânicos é assegurada por mercados locais, feiras e grupos de compras que formaram a rede Biocoop3. A carta da Nature et Progrès inspirou a da Federação Internacional dos Movimentos de Agricultura Orgânica (Ifoam), datada de 1972, que associava aos critérios agronômicos, objetivos ecológicos, sociais e humanistas.
Coerência
Mas o movimento camponês ligado a este tipo de cultura sofre para encontrar coerência interna. Nos anos 1980, a declaração oficial de finalidade da Nature et Progrès coabitava com uma quinzena de outras, criadas por diferentes movimentos. Em 1991, Bruxelas impôs uma definição de escopo para o conjunto da União Europeia, cuja aplicação pelo Estado francês fornece o selo nacional AB. Encarregados de fiscalizá-lo, os organismos certificadores, privados e comerciais, entraram em confronto com o controle participativo realizado até então pelas comissões de produtores, consumidores e beneficiadores.
A Natute et Progrès vive uma grave crise. Alguns membros decidiram boicotar o selo. Outros, tentados por um mercado certificado em plena expansão, deixaram a associação. “A certificação favoreceu os grandes distribuidores em detrimento das redes solidárias”, explica Jordy Van Den Akker, ex-presidente da Nature et Progrès. “A ecologia e o social, que para nós são valores importantes, não estão mais associados ao econômico. O selo e a regulamentação europeia permitiram o desenvolvimento de um mercado internacional, facilitando a livre circulação dos produtos, o comércio e a concorrência.”
Em vigor a partir de 1o de janeiro de 2009, uma nova regulamentação europeia permitiu, entre outras coisas, 0,9% de organismos geneticamente modificados nos produtos orgânicos e o adiamento da aplicação de leis referentes ao uso de agrotóxicos (4). “O orgânico é incompatível com os organismos geneticamente modificados”, reagiu Guy Kastler, criador do departamento de Hérault e militante da N&P. “Nós continuamos exigindo 0% de OGM! A nova regulamentação definiu normas e não se preocupa mais com as práticas agrícolas. Passaram de uma obrigação de meios – qual método de cultura utilizado? – a uma obrigação de resultado – qual resíduo é recuperado no produto final? É a porta aberta para a generalização de uma agricultura orgânica industrial.”
As cooperativas agrícolas estão no auge. Graças, em particular, à alimentação das aves que elas produzem e fornecem aos agricultores, suas margens de lucro são consideráveis. A antiga regulamentação francesa impunha ao criador de orgânicos a produção de 40% da alimentação animal em suas terras. Essa ligação com o solo não existe mais na nova regulamentação europeia. O criador compra das cooperativas a totalidade dos alimentos, entre os quais a soja é um dos componentes principais. Em 2008, na França, a produção de aves orgânicas teve um aumento de 17%, enquanto a de soja orgânica caiu 28%. A soja importada, muito mais barata, se impôs.
Frutas e legumes
A França importa mais de 60% das frutas e legumes orgânicos que consome. A ProNatura é a líder francesa de comercialização nas lojas especializadas e supermercados. Em menos de dez anos, esta empresa do sudeste da França multiplicou seu volume de negócios por dez e absorveu quatro outras sociedades. Um quarto de seus produtos provém da França, mas o resto é importado da Espanha (18%), do Marrocos (13%), da Itália (10%) e de cerca de 40 outros países. A ProNatura foi a primeira sociedade a comercializar frutas e legumes orgânicos fora das estações. Isto não impede que seu fundador, Henri de Pazzis, preconize o respeito à terra, ao meio ambiente, ao camponês e ao consumidor.
Mas a lei ditada pelas empresas distribuidoras está bem longe desses princípios. “Elas adotam para o orgânico os mesmos mecanismos de compra destruidores que usam no convencional”, explica Pazzis. “Elas encorajam a concorrência de um modo agressivo. Alguns de nossos produtos são retirados do mercado, pois outros fornecedores propõem preços muito inferiores aos nossos.” Nessa guerra de preços, da qual a ProNatura e as outras empresas de importação e exportação escolheram participar, o social e o respeito ao meio ambiente têm bem pouco espaço.
Há 12 anos, a ProNatura importa morangos orgânicos da Espanha, produzidos pela sociedade Bionest. Os donos, Juan e Antônio Soltero, possuem 500 hectares de estufas que, à primeira vista, não se diferenciam em nada das milhares de estufas convencionais que cobrem a região de Huelva, prejudicada por uma monocultura de morangos particularmente poluidora e exploradora de mão-de-obra. Como outras empresas, a Bionest situa-se no seio do parque natural de Doñana, inscrito no Patrimônio Mundial da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) (5). Segundo a WWF-Espanha, as estufas se multiplicam de maneira mais ou menos ilegal no parque, prejudicando o meio ambiente e ameaçando principalmente as reservas de água (6).
A Bionest não respeita a biodiversidade – as poucas variedades de morangos utilizadas são as mesmas das estufas convencionais –, pratica a monocultura e aplica fertilizantes nas plantas por meio de um sistema de irrigação por gotejamento. Seus métodos de cultura não são radicalmente diferentes dos usados pelas estufas convencionais de Huelva. Apenas os insumos certificados lhes garantem o selo orgânico. Para a colheita, a Bionest emprega centenas de romenas, polonesas e filipinas, com uma relação trabalhista precária. O assunto é muito delicado e os donos da Bionest recusam-se a receber jornalistas para dar explicações.
Essas mulheres vêm todo ano para a Espanha, diretamente recrutadas em seus países pelas organizações patronais, com contratos e vistos de duração limitada. Não conhecendo seus direitos, elas ficam totalmente submissas aos empregadores, que as exploram à vontade (7). Francis Prieto, membro local do Sindicato dos Trabalhadores dos Campos (SOC), improvisa uma visita aos acampamentos das trabalhadoras da Bionest. Totalmente isoladas no meio das estufas, elas devem se submeter a um regulamento rigoroso: proibição de visitas, saídas controladas, passaportes confiscados. “Elas são aterrorizadas por seus patrões”, explica Francis Prieto, “e sofrem a mesma exploração que os outros empregados temporários de Huelva, com condições de trabalho particularmente difíceis.”
A Bionest não é um caso isolado na Andaluzia. Nos arredores de Almería, a AgriEco produz, embala e comercializa, de setembro até o final de junho, mais de 11 mil toneladas de tomates, pimentões e pepinos orgânicos. Nas estufas dotadas de tecnologias de ponta, os insumos são certificados como “eco” e as trabalhadoras temporárias são romenas e marroquinas. Miguel Cazorla, dirigente sorridente e afável, prevê com orgulho uma nova expansão da sociedade. Transportados em caminhões para todas as lojas especializadas em produtos orgânicos da Europa, os legumes da AgriEco estão concorrendo diretamente com os produtos das estufas “orgânicas” da Itália, do Marrocos e de Israel. No circuito do Mediterrâneo, a guerra comercial tornou-se acirrada para o proveito dos intermediários.
Bem longe dessa profusão de produtos orgânicos industriais, a pequena cooperativa agrícola La Verde, na serra de Cadix, foi criada nos anos 1980 por trabalhadores membros do SOC que conduziram, no final do franquismo, lutas para obter terras. Seis famílias cultivam ali legumes e frutas e criam algumas vacas e carneiros em 14 hectares. Elas comercializam toda a sua produção na Andaluzia por meio de outra cooperativa, a Pueblos Blancos, que agrupa 22 pequenos agricultores e cooperativas. “Nós fomos os primeiros a nos lançar na agricultura orgânica”, lembra Manolo Zapata. “Ela se assemelhava à agricultura de nossos bisavós e ia ao encontro da nossa luta. Se a agricultura orgânica não conseguir restabelecer a justiça, a autonomia, a autossuficiência e a soberania alimentar, ela não terá sentido algum. E os certificadores não nos ajudam. Um agricultor que diversifica suas culturas e cultiva muitas variedades será mais pesadamente taxado que aquele que pratica a monocultura intensiva.”
Por ter denunciado publicamente o apoio do principal organismo certificador espanhol – o Comitê Andaluz de Agricultura Ecológica (CAAE) – às grandes empresas do biobusiness, a La Verde sofreu uma avalanche de inspeções. Enquanto seus membros criaram o mais importante banco de sementes orgânicas da Espanha, que lhes permitiu garantir sua cultura e abastecer todos os pequenos produtores de orgânicos da região, eles temem que a repressão caia sobre eles. “Existem leis e normas que reprimem o direito ancestral de reproduzir sementes e que nos impedem de certificar essas variedades antigas que nós preservamos.” A regulamentação europeia de agricultura orgânica impõe, de fato, ao agricultor utilizar sementes orgânicas certificadas. Se elas não existem, ele deve recorrer às sementes convencionais do mercado autorizadas. “Por enquanto, tudo se passa no limite da legalidade, mas se amanhã a venda de nossos produtos for proibida, seremos obrigados a usar as sementes orgânicas vendidas pela Monsanto (8).” Tomando como exemplo alguns camponeses da Nature et Progrès, os membros da La Verde pensam em se retirar da certificação orgânica.
Exemplos como o da La Verde se multiplicam atualmente, na Colômbia, Bolívia, Brasil, Índia, Itália e França. A resistência ao biobusiness organiza-se em todo o planeta. Cada vez mais camponeses, comunidades rurais e pequenas cooperativas de produtores defendem uma agricultura tradicional e tipos de culturas agroecológicas que privilegiem a produção com uma dimensão humana, respeitando a biodiversidade e a soberania alimentar. Muitos rejeitam as certificações e praticam os sistemas participativos de garantia fundados numa relação de troca e confiança entre produtores e consumidores. Redes de defesa das sementes orgânicas se desenvolvem para impor o direito dos camponeses de produzir e comercializar suas próprias sementes.
Na França, as associações para a manutenção da agricultura tradicional (Amap), que estabelecem trocas diretas entre produtores e consumidores sem passar pelo mercado, vivem tal euforia que não conseguem dar conta da demanda. A associação Terre de Liens coleta, com sucesso, fundos solidários para possibilitar o estabelecimento de jovens agricultores de orgânicos. Para se distinguir da regulamentação europeia, a Federação Nacional da Agricultura Biológica (FNAB) criou uma nova marca: a Bio-Cohérence. Ela complementará a certificação oficial, exigindo o respeito a metas muito mais rigorosas e a adesão a princípios inspirados naqueles adotados pela Ifoam em 1972. À parte da regulamentação, a Nature et Progrès segue defendendo a agricultura orgânica tradicional.
A integração, ou não, dos valores sociais e ecológicos no centro das preocupações dos produtores, intermediários e consumidores dos orgânicos determinará seu futuro. Tornar-se-á uma simples face do mercado, submissa aos únicos interesses do liberalismo econômico? Ou será ainda mensageira de uma alternativa a esse liberalismo?
1 Para atingir um dos objetivos fixados pela Grenelle de l’Environnement (Grenelle do Meio Ambiente), o Estado pretende introduzir, até 2012, 20% de mercadorias provenientes da agricultura orgânica no cardápio dos restaurantes das administrações e estabelecimentos públicos.
2 A maioria das cifras citadas provém do dossiê de imprensa da Agence Bio “Les Chiffres de la Bio Sont au Vert”, serviço de imprensa da Agence Bio, 2010, e da obra Agriculture Biologique, Chiffres clés, Agence Bio, Montreuil-sous-Bois, edição 2009.
3 Pascal Pavie e Moutsie, Manger Bio. Pourquoi? Comment? Le Guide du Consommateur Éco-Responsable, Edisud, Aix-en-Provence, 2008.
4 “Bio/OGM: o Voto dos Deputados Europeus em Detalhes”, 21 de maio de 2009, www.terra-economica.info.
5 Ler “Importer des Femmes pour Exporter du Bio?” (Importar Mulheres para Exportar Orgânicos?), Silence, n° 384, novembro de 2010.
6 Communicado da WWF: “Fraises Espagnoles: Exigeons la Traçabilité” (Morangos Espanhois, Exijamos a Identificação da Origem), 23 de março de 2007.
7 Emmanuelle Hellio, “Importer des Femmes pour Exporter des Fraises (Huelva)” (Importar Mulheres para Exportar Morangos), Etudes Rurales, Paris, julho-dezembro de 2008.
8 “A Qui Profite la Récolte? La Politique de Certification des Semences Biologiques” (Quem se Beneficia com a Colheita? A Política de Certificação das Sementes Orgânicas), relatório da Grain, Barcelona, janeiro de 2008, www.grain.org.
* Phillipe Baque é jornalista, coordenador do projeto do livro “De la Bio Alternative aux Derives du “Bio”-Business, Quel Sens Donner à la Bio?, que será lançado no final de 2011, alterravia.com.
** Publicado originalmente no site Le Monde Diplomatique Brasil.