A população paulistana que depende do sistema público de saúde enfrenta uma situação difícil. Os problemas não são novos e são bastante conhecidos: faltam médicos de várias especialidades, a demora no atendimento é imensa, levam-se meses para marcar e passar em consultas, faltam medicamentos, não há unidades de saúde em número suficiente etc. Apesar de todas as mudanças e projetos estabelecidos na última década, a situação efetiva para quem busca um hospital ou Unidade Básica de Saúde (UBS) continua praticamente a mesma do fim dos anos 90.
Observado em retrospecto, o sistema de saúde brasileiro como um todo evoluiu. Nos tempos de INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social), somente quem tinha registro em carteira de trabalho era atendido pelo sistema de saúde do estado. A maioria da população era excluída ou atendida unicamente por organizações humanitárias, como as Santas Casas. A cidade de São Paulo deu um novo passo com o estabelecimento das Organizações Sociais de Saúde (OSS), há quase dez anos. Mas este não parece ser um passo que proporcione mudanças substanciais na estrutura do SUS no município.
As OSS são como ONGs ligadas a empresas que atuam, em geral, na área da saúde. Estabelecem um convênio com a prefeitura, onde recebem a concessão de uma UBS, hospital ou AMA (Assistência Médica Ambulatorial). A partir disso passam a realizar a gestão financeira, técnica e administrativa da unidade. As OSS contratam profissionais sem realização de concurso, por sistema CLT. Também fazem compras sem abertura de licitação. Todo o dinheiro aplicado na gestão é repassado pela prefeitura e a Organização Social recebe ainda um taxa administrativa, que não tem aplicação específica.
De acordo com o coordenador de pesquisa do Hospital M’ Boi Mirim, Dr. Mário Bracco, as Organizações Sociais permitem uma melhor gestão da saúde pública. “A administração direta permitia muito desmando, o controle pela OSS garante a cobrança do funcionário e melhor gestão dos recursos”, disse Bracco ao Correio da Cidadania. Para ele, o modelo não constitui privatização, pois as organizações não têm poder total sobre a gestão. E o mais importante é que as pessoas tenham o seu problema resolvido. “As OSS têm de atender de acordo com as diretrizes do SUS e devem prestar contas para a prefeitura”, completa.
Para Paulo Spina, do Fórum Popular de Saúde de São Paulo, a instituição das OSS fere os princípios do SUS. “O SUS em São Paulo está fragmentado, são mais de 30 organizações gerindo de formas distintas, pois existem OSS ligadas a universidades, igrejas etc.”. Além disso, para Spina, a percepção de que as Organizações Sociais melhoraram o atendimento e as condições dos funcionários é falsa. “Para justificar a instituição das OSS, o município sucateou o sistema e o trabalhador, que há muitos anos não recebe aumento, promoções etc.”, explicou à reportagem.
Uma condição que chama atenção em relação à concessão das unidades de saúde para as Organizações Sociais é o fato de que todo o dinheiro utilizado por elas vem integralmente do Estado. O investimento em saúde na cidade de São Paulo tem aumentado ano após ano. E esse recurso é repassado às OSS para custeio de todas as suas atividades. A questão que se impõe é: se a prefeitura pode repassar este valor para a administração pela Organização Social, acrescido da taxa de administração, porque a mesma prefeitura não pode gerir diretamente as unidades de saúde?
O promotor do Ministério Público, Dr. Artur Pinto Filho, acredita que esta também é uma questão ideológica. “As OSS vêm dentro da ideia neoliberal de Estado Mínimo, de que a iniciativa privada era muito melhor em tudo”, diz. Pinto Filho concorda que é preciso melhorar a gestão e o atendimento à saúde, mas isso não pode levar à desconstrução do SUS e dos princípios de gestão pública. “As OSS compram sem licitação, pagam salários até quatro vezes maiores do que se paga a um funcionário público de carreira, não aplicam um centavo e custam em média 40% mais caro ao Estado”, complementou.
De uma forma geral, não houve grandes ampliações no atendimento à saúde em São Paulo. Tomando como exemplo a região da Capela do Socorro, a carência de unidades básicas de saúde é de ao menos o dobro do número atual, de 17. A instituição das AMAs, que realizam atendimento de baixa complexidade, poderia ter ampliado as unidades, mas foram estabelecidas a partir da divisão de UBS já existentes em dois equipamentos distintos, ainda que nas mesmas dependências físicas. Na mesma região não há atenção em saúde mental. E o único hospital de grande porte da região, o Hospital Geral do Grajaú, atende cerca de 1,2 milhão de habitantes, já que atende também a população do distrito de Parelheiros.
Para se ter uma ideia da situação, nos últimos meses a Rede Extremo Sul, movimento social que atua em comunidades na periferia de São Paulo, vem realizando diversas manifestações exigindo melhores condições no atendimento à saúde na região de Capela do Socorro. Entre as reivindicações está a UBS Cantinho do Céu, que existe, mas não existe. O Cantinho do Céu tem contrato de parceria entre a OSS e a prefeitura, tem a equipe contratada e trabalhando há mais de um ano, mas lhe falta ainda o próprio prédio. Por ora, espremem-se todos, funcionários e pacientes, na UBS Residencial Cocaia Independente.
No caso das AMAs, existe outra preocupação. Essas unidades não fazem prontuários de atendimento, ou seja, não existe acompanhamento do paciente. E ao estabelecer a AMA em substituição à UBS, a prefeitura faz a opção pelo atendimento curativo, o que também custa mais caro. De acordo com Spina, não se trata de negar as AMAs, mas de estabelecer prioridade pela prevenção. “Defender que as AMAs sejam extintas é um absurdo porque a população necessita, mas precisamos priorizar o atendimento preventivo além do curativo”, afirmou.
Spina ainda questiona a situação do controle social do SUS, estabelecido na lei que o gerou (8080/90). Para ele não há como garantir fiscalização sobre as finanças e o atendimento porque as OSS não disponibilizam suas informações. “Não há controle social, pois estas organizações são de direito privado e seus dados não estão disponibilizados”, disse. Essa questão fica ainda mais complexa ao se observar a forma como a administração municipal tem tratado o Conselho Municipal de Saúde (CMS). Eleita desde janeiro, a gestão atual do CMS ainda não teve acesso a quaisquer documentos sobre a gestão da saúde no município.
Com tantos problemas, cabe perguntar como se posiciona a prefeitura de São Paulo e a Secretaria Municipal de Saúde. Pergunta que novamente ficará sem resposta. Da mesma forma que os funcionários das unidades de saúde se negam a conversar com a imprensa. Estes sob alegação de serem proibidos por contrato de se manifestar publicamente. O poder público, por sua vez, segue ignorando os inúmeros pedidos de entrevista que foram feitos desde o começo de maio, quando se iniciaram as manifestações sobre saúde no extremo sul de São Paulo.
* Publicado originalmente no site Correio da Cidadania.