“Ter diabetes remete geralmente às interdições, o que é mais sentido por homens que por mulheres”, segundo o diagnóstico da doutora em Saúde Coletiva, Reni Aparecida Barsaglini.
Tratar o diabetes, segundo a pesquisadora Reni Barsaglini, envolve uma relação de autoridade e poder disciplinar da prática e do saber biomédicos sobre os adoecidos. Em entrevista à IHU On-Line, realizada por e-mail, Reni apresenta o diabetes a partir de um olhar socioantropológico e explica a relação dos profissionais da saúde com os doentes. Também analisa a vida dos que sofrem com esse mal e reflete sobre os desafios do Brasil no que diz respeito ao tratamento e diagnóstico da doença.
Para Reni, “deve haver um esforço em conhecer e preservar, na medida do possível, os aspectos simbólicos peculiares envolvidos no comportamento alimentar dos adoecidos. Além disso, não deve ignorar a intermediação por elementos da estrutura econômica, social e política, estando atento aos saberes, às representações, aos discursos e circunstâncias que viabilizam ou dificultam as ações referentes às práticas alimentares, as quais somente ganham sentido quando reportadas à totalidade da vida das pessoas”.
Reni Aparecida Barsaglini é graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). É também especialista em Saúde Pública pela Universidade Federal de São Carlos e em Políticas de Recursos Humanos para a Gestão do SUS pela Universidade de Brasília (UnB). É mestre em Saúde e Ambiente pela Universidade Federal de Mato Grosso e doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É professora no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso e pesquisadora da Unicamp.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que analisa, a partir de um enfoque socioantropológico, as pessoas que vivem com diabetes?
Reni Aparecida Barsaglini – Nossa intenção foi utilizar tanto as contribuições da sociologia quanto da antropologia para abordar o assunto. Com isso, apreendemos a perspectiva dos sujeitos envolvidos na questão do diabetes (pessoa adoecida, familiares, profissionais de saúde), valorizando aspectos subjetivos repletos de possibilidades, mas que são mediados pela cultura e esta se inscreve numa dada sociedade. Então, queríamos dar voz à pessoa que vivencia cotidianamente o diabetes: uma condição crônica que o acompanha em todos momentos da vida.
Assim, é uma condição que requer um gerenciamento de questões referentes ao diabetes concomitante a outras demandas não médicas também importantes para o sujeito, fazendo com que ele viva “com” e “apesar” da doença/diabetes e tudo isso em um dado contexto. Escolhemos o diabetes devido à sua importância na Saúde Pública e em especial a do tipo 2. Ressaltamos, porém, a necessidade de estudar a do tipo 1, que tem particularidades, impõe maior rigor no seguimento das prescrições e, inclusive, acomete pessoas mais jovens.
IHU On-Line – Como é o discurso dos profissionais da saúde sobre a pessoa com diabetes?
Reni Aparecida Barsaglini – Os profissionais de saúde – orientados pelo discurso científico – reinterpretam o saber erudito sobre o diabetes no exercício de sua prática, a partir da experiência (profissional e pessoal pela convivência próxima com familiares com diabetes), passando-a pelo crivo das representações (ideias mais gerais sobre saúde, doença, etc.).
Isto quer dizer que os profissionais de saúde carregam consigo padrões socioculturais interiorizados ao longo da sua socialização, que servem de parâmetros para projetar noções sobre os adoecidos, sustentadas, também, em bases morais que trazem subentendidas normas de um comportamento considerado adequado diante da doença diagnosticada e, consequentemente, censura ao desvio do mesmo. Ou seja, espera-se a docilidade dos indivíduos aderindo às prescrições terapêuticas, cabendo a eles considerável parte da responsabilidade do controle bem-sucedido da enfermidade e dos resultados satisfatórios. Caso contrário, podem ser rotulados como “bons” ou “maus” pacientes e ter os seus comportamentos repreendidos.
No caso do diabetes, os comportamentos necessários ao seu gerenciamento são vigiados (pelo próprio adoecido, que pode sentir culpa por não conseguir controlar os níveis de glicemia ou pelas pessoas do seu convívio e relações, o que inclui os profissionais de saúde) e é comum (mas não necessariamente) atribuir-lhes características estereotipadas de “rebeldes” e “teimosos”, corroborando os achados da literatura socioantropológica sobre a aderência ao tratamento nas doenças crônicas.
Envolve uma relação de autoridade e poder disciplinar da prática e saber biomédicos sobre os adoecidos, exercendo a sua função de controle social, ainda que estes possam resistir e colocá-la em xeque de formas variadas e originais – não são passivos. Ressalto que tal observação é verificada também na literatura, mas não são resultados generalizáveis (todos os profissionais). São, todavia, conceitos que devem ser levados em consideração nos estudos similares.
IHU On-Line – Quais são os significados e sentidos atribuídos por parte de quem sofre da doença?
Reni Aparecida Barsaglini – Ter diabetes remete geralmente às interdições, o que é mais sentido por homens que por mulheres. As interdições passam pela alimentação e esta afeta a sociabilidade e, em decorrência, duas possibilidades foram observadas: os sujeitos “transgridem” as prescrições em situações especiais (almoços de fim de semana, comemorações, etc.) – as chamadas “licenças sociais” nas quais se permitem “esquecer a dieta”, pois a sociabilidade é mais valorizada em detrimento do controle da glicemia. Eles entendem poderem compensar os abusos/extravagâncias posteriormente tomando alguns tipos de chás, caprichando na dieta, verificando glicemia capilar – daí um dos motivos da procura comum às unidades de saúde às segundas-feiras, pós-feriados, etc.
Outra possibilidade é manter o rigor das prescrições, mas isolar-se para evitar recusas a alimentos. Para os homens acrescenta-se a restrição às bebidas alcoólicas que podem privá-los das companhias dos colegas. Além disso, há a questão das suas atividades serem comumente externas à casa, o que dificulta respeitar os horários do uso do medicamento e a necessidade de alimentar-se certo tempo depois, sob pena de mal-estar.
Embora não tenha sido verbalizado pelos homens pesquisados, tivemos pistas (pelas esposas e profissionais de saúde) sobre a consequência de impotência pelos usos dos medicamentos e que pode desestimular os sujeitos. A procura de especialistas é indicada, mas nem sempre viável, assim como a troca de medicamento quando este não é oferecido na rede pública.
Há também o significado do tratamento. Nele busca-se o controle e este é central, tanto para os profissionais, quanto para as pessoas com diabetes, porém adquire diferentes significados para ambos os grupos. Assim concordam com a dimensão gerencial da enfermidade, na qual se observa haver pontos de convergência e divergência entre eles.
Para os profissionais de saúde, o controle significa, de modo geral, manter o nível de glicose dentro de padrões de referência. Já os adoecidos não ignoram a importância do tratamento (representado pela tríade medicamento/dieta/exercício físico) e é comum a reprodução verbal das recomendações (mostrando-se conhecedores das prescrições) sem corresponder à sua total observação (intrigando os profissionais de saúde). Porque os comportamentos em relação ao diabetes se orientam, em parte, por conceitos, critérios, princípios, fatores e valores às vezes incompatíveis com as prescrições, requerendo que adequações sejam feitas.
Assim, os adoecidos, no esforço de gerenciar o diabetes, empreendem ajustes com uma lógica particular, mas que lhes permite viver tão normalmente quanto possível; controlar a doença e não ser controlado por ela de modo a permitir viver física e moralmente bem (com e apesar da doença, dizem estudos clássicos sobre o assunto).
IHU On-Line – Que fatores estão envolvidos nas formas como o adoecido pensa e lida com o diabetes?
Reni Aparecida Barsaglini – As formas de pensar e lidar em relação ao diabetes se orientam por conceitos, critérios, princípios, fatores e valores prévios e mais gerais sobre o que é saúde, doença, medicamentos, assim como na sua própria experiência com a enfermidade, nas interpretações das sensações corporais (e aí a sua relação e os usos do corpo que variam conforme gênero, idade, ocupação laboral, etc.). Obviamente, há influência também de fatores “externos”, como a oferta e acesso a serviços de saúde, a políticas e programas na área. São fatores objetivos e subjetivos e este último não é autônomo ao contexto coletivo.
IHU On-Line – Como lidar com pacientes que sabem que têm a doença, mas que simplesmente se comportam como se não a tivessem?
Reni Aparecida Barsaglini – Sabemos que a intervenção é complexa e nas enfermidades crônicas (condições que requerem cuidado permanente ou por longo período) a decisão, em última instância, é do sujeito (quero dizer que é diferente de tratamentos pontuais nos casos agudos nos quais pode se ter um controle maior sobre as influências para que a pessoa siga um tratamento). Desta forma, a relação deve ser de ajuda mútua (profissional/adoecido), em vez de uma relação médico-centrada (ou outro profissional de saúde), que pressupõe passividade do adoecido para aceitar e seguir as recomendações.
IHU On-Line – Quais os desafios do Brasil, principalmente em relação ao Sistema Único de Saúde, no tratamento e diagnóstico da doença?
Reni Aparecida Barsaglini – No nosso sistema público de saúde, que tem caráter universal, o desafio está em garantir a identificação e o acompanhamento sistemático dos agravos decorrentes do diabetes nos casos instalados. Além disso, e ao mesmo tempo, a ideia é desenvolver ações de promoção de saúde, além de prevenir as complicações e outras doenças, como a hipertensão arterial, que acompanha o diabetes do tipo 2 em 68% dos casos, segundo dados do Ministério da Saúde.
É um desafio também lidar com doenças crônicas que, no nosso contexto, convivem com as infecto-parasitárias, reemergentes, as “negligenciadas”. Penso que a prevenção é importante, mas envolve e extrapola os serviços de saúde – daí a intersetorialidade. Um exemplo são os casos de diabetes do tipo 2 que, em geral, acometia pessoas acima de 40 anos e que vem se apresentando em pessoas mais jovens, fator fortemente associado à obesidade.
IHU On-Line – O diabetes também está ligado aos hábitos de vida e alimentares das pessoas. Depois desse estudo, o que podemos concluir sobre a qualidade e os hábitos de vida dos brasileiros?
Reni Aparecida Barsaglini – Algo que as abordagens socioantropológicas já entendiam: que hábitos de vida e alimentares não dependem exclusivamente da vontade do sujeito. Sem ignorar essa dimensão individual, temos que olhar para os condicionantes, mediadores culturais e sociais desse processo. Hábitos são herdados, difíceis de mudar; há também constrangimentos contextuais (condições precárias de vida e de trabalho) que não se modificam de uma hora para outra.
Autores apontam para que se otimizem os hábitos saudáveis ou possibilidades do repertório de cada grupo social. Essa dimensão sociocultural às vezes é esquecida: apontam-se questões psicológicas que acabam também recaindo/responsabilizando o indivíduo em detrimento do seu contexto e quando apontam para questões culturais embutem uma noção de que são “crendices” (infundadas, imaginárias) e resistência ou incapacidade para compreender “o correto”.
Dada a diversidade de costumes que comporta o Brasil, deve-se considerar as especificidades regionais (contexto, alimentação) para oferecer opções aos sujeitos. Há recomendações genéricas que circulam em manuais de orientação nos casos de diabetes e hipertensão, por exemplo, que devem ser revistas e adequadas à realidade local e biográfica (de cada um). Não estou com isso desqualificando tais dispositivos, mas ressaltando que requerem ponderação e ajustes e não uma aplicação acrítica.
IHU On-Line – Como podemos entender a nossa cultura de relacionamento com a comida? Ela dificulta a vida de quem sofre de doenças como o diabetes?
Reni Aparecida Barsaglini – Não é só a nossa. Afirmo na pesquisa que o comportamento alimentar não se orienta somente por critérios racionais como gostaria o saber biomédico, preocupado mais com a “nutrição” do que com a “comida”. Rosa W. Garcia explica que o termo “nutrição” reporta-se aos conteúdos técnicos e enfoca a norma da dieta regulada, enquanto “comida” recupera elementos da experiência pessoal e social do consumo de alimentos.
Em um livro sobre este tema, Ana Maria Canesqui afirma que “a comida, além de saciar a fome, nutre simbolicamente os elos e as obrigações familiares”. Se, no plano material, a alimentação guarda uma função vital e é influenciada pela desigualdade na distribuição de recursos nos diferentes grupos sociais, no plano simbólico ela é perpassada por representações, normas e valores ativados cotidianamente, diversificados no espaço e no tempo. Conhece aquela letra de música que diz “Bebida é água, comida é pasto. Você tem fome de quê?”? Ela é sugestiva às funções e aos significados da comida.
Se, num primeiro momento, cuidar da saúde e da alimentação parece depender de uma decisão individual (baseada em alguma informação ou norma), é preciso, para se apreciar a dificuldade envolvida, compreender as implicações relacionais estabelecidas pela cultura do grupo de pertença do indivíduo, afirmam Adam & Herzlich em sua obra Sociologia da Doença e da Medicina.
Enfim, deve haver um esforço para conhecer e preservar, na medida do possível, os aspectos simbólicos peculiares envolvidos no comportamento alimentar dos adoecidos. Além disso, não se deve ignorar a intermediação por elementos da estrutura econômica, social e política, estando atento aos saberes, às representações, aos discursos e circunstâncias que viabilizam ou dificultam as ações referentes às práticas alimentares, as quais somente ganham sentido quando reportadas à totalidade da vida das pessoas.
* Publicado originalmente no site IHU On-Line.