Em 1823, foi transformada em quintal dos Estados Unidos. Após 150 anos, Pinochet a convertia em laboratório do neoliberalismo. Mas nem as intervenções militares nem a tutela econômica foram suficientes: a América Latina resiste. Então, levantes? Revoltas? Revoluções? Não importa: os povos souberam dizer “não”.
“Muito pitorescos, sob ponchos encardidos, sempre armados, os fuzis sob o braço mesmo durante as refeições, os cartuchos à mão e prontos para atirar, os insurrectos (sic) não recuam diante de missão heroica alguma e, quando necessário, explodem sem hesitar vias férreas e trens, com dinamite.” Quem poderia imaginar, lendo essa descrição feita em 1911 pelo jornal francês L’Illustration(1), mais que uma rebelião, uma revolta, um levante – mesclado, caramba! – de folclore mexicano? E, no entanto… Fomentada pelo liberal Francisco Madero, descontente em ver Porfirio Diaz (de 83 anos) governar desde 1876 e se eternizar no poder, essa “pitoresca” insurreição se transformaria na maior revolução da história latino-americana.
Na época, pouco mais de oitocentos grandes proprietários detinham quase todo o território nacional; as comunidades indígenas foram destituídas em prol dos grandes latifúndios, em geral estrangeiros, de companhias norte-americanas que controlavam três quartos das minas e mais da metade dos campos de petróleo. Opondo-se a essa situação, ecoam palavras de ordem nacionalista: “O México para os mexicanos”. No Estado de Morelos, os camponeses se revoltam sob o apelo de Emiliano Zapata: “Mais vale, homens do Sul, morrer de pé que viver de joelhos!”. No Norte, espetacular, colorido, épico, uma singular mistura de bandido e reformador social, luta Pancho Villa.
Em um percurso sinuoso de três décadas atravessadas por ambições rivais, interesses opostos, idealismo e crimes, interferências estrangeiras, essa maré rompe a aliança hegemônica entre os grandes proprietários, a Igreja, o setor mineiro e os ianques; proclama uma lei agrária de inspiração zapatista; põe fim ao despotismo; instaura o princípio do controle dos recursos naturais e da economia. Quando, em 1940, no final do mandato de Lázaro Cárdenas, o petróleo foi nacionalizado, o poder de abalar dessa revolução ao mesmo tempo burguesa, agrária, indigenista e nacionalista, influencia todo o subcontinente.
Tendo desembarcado havia pouco tempo naquelas terras, o anarco-sindicalismo e o sindicalismo revolucionário tiveram o seu papel em algumas ocasiões – mesmo que em menor medida. De fato, tanto os pontos de partida como os de chegada desse “terremoto” diferem daqueles que, na Europa, de outubro de 1917 a dezembro de 1922, sob o impulso de Vladimir Ilitch Oulianov, o Lenin, de Leon Trotsky e de batalhões bolcheviques, culminaram na criação da URSS e na instauração da “ditadura do proletariado”. Quando o marxismo chega definitivamente ao outro lado do Atlântico92), um dos pensadores latino-americanos mais inventivos, José Carlos Mariátegui (1894-1930), fundador do Partido Socialista Peruano, afirma: “Não queremos de maneira alguma que o socialismo na América seja uma cópia exata (do seu homólogo europeu). Ele tem de ser uma criação heroica. Devemos dar vida ao socialismo indo-americano a partir de nossa própria realidade e da nossa própria linguagem”(3).
Não vamos aqui nos arriscar a contestar o célebre enunciado atribuído a Lenin: “Sem teoria revolucionária não há prática revolucionária”. Entretanto – e essa, de longe, não será a única exceção –, a virada que deixa a Bolívia de cabeça para baixo, em abril de 1952, acontece sem plano pré-concebido. Simplesmente, após o Movimento Nacional Revolucionário (MNR) ter vencido as eleições presidenciais de 1951, cujos resultados seriam anulados por uma junta militar, foram reunidas as condições necessárias para a revolução de maneira súbita. Os mineiros realizam marchas em La Paz – seiscentos mortos –, as milícias camponesas tomam o controle do país. O novo governo nacionaliza as minas, decreta uma reforma agrária e coabita durante vários anos com o poder paralelo dos sindicatos de operários e camponeses – antes (talvez!) de realmente dar a Lenin a mão à palmatória: como no México, essa revolução social, que tinha forte dimensão nacionalista, mas não socialista, entra em crise nos anos 1960, e acaba.
Não é mais Karl Marx, mas José Martí que, antes de morrer em maio de 1895, em plena guerra de independência, convence cubanos patriotas de que a guerra revolucionária é a única via certa. Quando os comandantes Camilo Cienfuegos, Ernesto Che Guevara e essa força da natureza que se chama Fidel Castro entram em Havana, em janeiro de 1959, o movimento de 26 de Julho (o M-26) não é exatamente um partido marxista-leninista. Além disso, o movimento levanta os fuzis redentores com base em uma guerrilha camponesa, na Sierra Maestra, em vez de armar os “batalhões de ferro do proletariado operário”.
Destruindo o velho sistema de propriedade e privilégios e rompendo com o domínio das companhias norte-americanas sobre a economia, o M-26 traz de volta à ordem do dia a fusão entre nacionalismo revolucionário e transformação social. Em dezembro de 1960, uma música popular está na boca do povo: “Se Fidel é comunista, ponham-me também na lista, pois estou com ele!”. Seria ele comunista? É provável que não. Ele se arriscará na empreitada somente por força dos acontecimentos. Em 16 de abril de 1961, em um discurso pronunciado durante o auge da invasão da Baía dos Porcos, no cemitério de Havana, onde são enterradas as vítimas dos bombardeios aéreos organizados pelos Estados Unidos, ele qualifica pela primeira vez a revolução de “socialista”.
Uma conferência realizada em março de 1961 no México, por iniciativa de Lázaro Cárdenas (o último presidente do México revolucionário!), apresenta ao mesmo tempo sintomas de uma filiação com o passado e, no presente, uma possível influência. Estimulados pelo exemplo de Havana, os oradores, um após outro, tomam posição por uma soberania econômica que nacionalizaria as empresas estrangeiras. Depois do susto, Washington prepara de modo aberto uma orgia de sangue e atrocidades.
Confrontado com esse risco, o subcontinente redescobre o “camarada Lenin” e os “fundamentais”: o triunfo do socialismo em um só país é impossível. “Como o inimigo real é o imperialismo norte-americano, que pôs para funcionar um aparato de repressão em escala continental – que cedo ou tarde haverá de ser enfrentado diretamente, como no Vietnã ou em Santo Domingo –, a luta revolucionária deve ser uma luta continental”, afirma a Primeira Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (Olas), realizada em Havana, em abril de 1967. O internacionalismo, mas também a diversidade das realidades nacionais, retorna como leitmotiv nos escritos e discursos de Guevara e de Castro: “As reais capacidades de um revolucionário”, explica este último, “são proporcionais à sua habilidade de encontrar táticas revolucionárias adequadas a cada situação”(4).
Um equilíbrio instável entre a luz e as trevas: em 1967, “Che” é assassinado na Bolívia; alguns anos mais tarde, as guerrilhas urbanas ou rurais de inspiração castrista são dizimadas… Chegado o tempo das ditaduras, a doutrina de segurança nacional(5) parece ter vencido em todo lugar. No entanto, em 19 de julho de 1979, ecoa um novo “Revolução ou morte!”. Influenciados pela brutal onda de choque da Revolução Cubana, as colunas militares da Frente Sandinista de Liberação Nacional (FSLN) chegam de modo triunfal em Manágua. Cinquenta mil mortos foram necessários para erradicar a ditadura pró-norte-americana de Anastásio Somoza. Da Casa Branca, o presidente James Carter pede à direção da FSLN que organize “eleições gerais e livres” e transforme o “governo revolucionário em governo constitucional”. Único sobrevivente dentre os três fundadores da Frente (1961)(6), Tomás Borge lhe responde: “Nosso povo já votou – com seu próprio sangue”.
Poucas revoluções vitoriosas apresentaram uma frente ideológica tão pluralista como na Nicarágua. Nacionalistas dizendo-se seguidores de Augusto César Sandino(7) e/ou marxistas e/ou cristãos progressistas e/ou social-democratas radicais, os dirigentes da Frente – que durante cinco anos mantiveram uma diretoria colegiada – vão tentar conjugar transformação social e a reconstrução nacional baseando-se na participação da população. As operações incessantes de bandos armados da chamada Contra, financiados e organizados por Washington, levaram mais de dez anos para extenuá-los e levá-los à derrota, vencidos pela fome e pela guerra, durante as eleições de 25 de fevereiro de 1990.
Durante a década seguinte, em um contexto global pós-Muro de Berlim, regimes ditos democráticos introduziram a maior operação de regressão social da história moderna do continente. Até que, a partir de 1998, originárias de processos eleitorais, “novas revoluções” aparecem – “bolivariana” na Venezuela, “cidadã” no Equador, “democrática e cultural” na Bolívia.
De mau humor, aqueles que dominam a teoria se referem ao bom e velho Marx: “A violência é a parteira de toda sociedade velha e grávida de uma nova sociedade”(8) – ou a Friedrich Engels: “Uma revolução é (…) o ato pelo qual uma parte da população impõe sua vontade à outra por meio de fuzis, baionetas e canhões, meios autoritários desde que eles existam”(9). Mas, e daí? Seja radical, um processo de transição que marca um ponto de partida para um futuro que se quer melhor, não implica ter alguma fascinação pela violência. Mesmo quando a violência constitui a única opção para acabar com a pobreza na qual são jogadas milhões de seres humanos, ou para reagir à brutalidade repressiva do “dinheiro que manda”, ninguém a deseja. O papel da democracia como bandeira de luta marca uma mudança substancial na maneira como, após o declínio soviético e do “socialismo real”, os movimentos revolucionários encaram sua legitimidade.
Em 30 de janeiro de 2005, em um discurso durante o 5° Fórum Social Mundial de Porto Alegre, diante de uma multidão de cem mil pessoas, o presidente venezuelano Hugo Chávez fez um apelo para a fundação de um “socialismo do Século 21”. Heresia para alguns, esperança de renovação para outros, a proposta põe fogo nos debates. A direita denuncia os velhos fantasmas de um comunismo disfarçado. Os esquerdistas desiludidos dos anos 1960 e 1970 falam em populismo. Os “duros de roer” falam em farsa: não se trata nem de socialismo, nem de revolução!
Sem base teórica nem doutrinal, tomando forma conforme o avanço, os mecanismos postos em prática nessa América que se move desafiam efetivamente a ortodoxia. As tradições coletivas de organização e resistência das comunidades indígenas constituíram fator determinante no Equador e, sobretudo, na Bolívia, onde não se sabe tratar-se de uma luta de classes ou confrontação de caráter étnico. Nesses dois países e também na Venezuela, a nacionalização (parcial) dos hidrocarbonetos e a expropriação de empresas estratégicas, com indenização dos proprietários, divergem dos confiscos sem contrapartida das revoluções socialistas de antes. Nem a estatização da economia nem a lógica de “socialização forçada”: as regras do capitalismo são, em parte, respeitadas.
Seria desejável opor o que é idealmente revolucionário ao mais progressista possível em um dado momento? Durante a reunião da Olas, em 1967, os partidários burocráticos de um dogma estático instaram Castro (não muito conhecido por ser apático) a reagir: “Às vezes, os documentos dos políticos ditos marxistas dão a impressão de que pegamos um modelo nos arquivos, modelo 14, modelo 13, modelo 12, todos similares, com a mesma fraseologia que constitui obrigatoriamente uma linguagem incapaz de expressar situações reais”(10). Doze anos mais tarde, o mesmo Castro recomendaria aos sandinistas que “considerem Cuba como uma experiência da qual se tem de compreender os erros para evitar repeti-los”(11).
Não há na América Latina o que Lenin chama de “situação revolucionária”. Mas nenhuma das revoluções precedentes foi “quimicamente pura”. Em lugar de atribuir nomes e colar etiquetas doutrinárias, constataremos que os processos de transformação social levados a cabo em Caracas, Quito, La Paz, Manágua (em Honduras também, antes do golpe de Estado), apesar das limitações objetivas, do contexto econômico globalizado e das relações de força, não param de se radicalizar. Esses processos enfrentam, é verdade, sérios limites, a inércia das burocracias, locautes, ausência de pessoal tecnicamente qualificado, agressão permanente… Mas cada um desses países foi capaz de redigir uma nova Constituição contrária à antiga (fruto de um pacto entre as elites); suspender reformas neoliberais; libertar-se do poder dos mercados; criar espaços que permitem a participação cidadã; avançar na constituição de um Estado social; e progredir na integração regional, em nome do ideal bolivariano. Pouco importa como chamamos isso: trata-se de uma força explosiva própria das revoluções.
“Grandes avenidas ainda se abrirão por onde passará o homem livre!”
Por Salvador Allende
Camaradas que estão me ouvindo: a situação é crítica, estamos diante de um golpe de Estado do qual participa a maioria das Forças Armadas. (…)
Não tenho vocação para mártir, sou um combatente da causa social que cumpre a tarefa que o povo lhe confiou. Porém, aqueles que desejam voltar para trás na história e negam a vontade da maioria dos chilenos, me escutem: ainda que eu não seja um mártir, não recuarei. Que eles saibam, ouçam e gravem isso em suas mentes: deixarei o palácio La Moneda quando terminar o mandato que o povo me confiou, defenderei a revolução chilena e defenderei o governo porque é por isso que o povo me elegeu. Não tenho outra escolha. Somente as balas poderiam impedir-me de cumprir a missão que o povo me incumbiu.
Diante desses acontecimentos, declaro aos trabalhadores que não renunciarei! Face a essa virada histórica, pagarei com a vida minha lealdade ao povo. Tenho certeza de que a semente que foi plantada na consciência de milhares de chilenos não poderá ser arrancada. Eles têm a força, eles poderão nos subjugar, mas os movimentos sociais não se controlam nem pelo crime, nem pela força. A história pertence a nós, são os povos que a fazem. (…)
Dirijo-me a vocês e, em particular, à mulher simples do nosso país, à camponesa que acreditou em nós, à operária que trabalhou mais, à mãe que compreendeu nossas preocupações em relação a seus filhos. Dirijo-me a todos os profissionais, aos patriotas que nunca deixaram de lutar contra a rebelião encorajada pelas corporações profissionais, corporações de classe que também defendiam os privilégios da sociedade capitalista.
Dirijo-me à juventude, àqueles que cantaram e manifestaram sua alegria e seu espírito combativo. Dirijo-me ao homem chileno, ao operário, ao camponês, ao intelectual, àqueles que serão perseguidos, porque o fascismo já está presente em nosso país: através de atentados terroristas, explodindo pontes, cortando ferrovias, destruindo oleodutos e gasodutos, diante do silêncio dos que tinham o dever de reagir. Eles são responsáveis. A história os julgará.
Eles certamente calarão a Rádio Magallanes, e o metal tranquilo da minha voz não chegará mais até vocês. Pouco importa. Vocês ainda a ouvirão. Sempre estarei junto a vocês. A lembrança que terão de mim será pelo menos a de um homem digno, de um homem que foi leal à sua pátria. (…)
Trabalhadores da minha pátria, tenho fé no Chile e em seu destino. Outros homens superarão esse momento cinzento e amargo em que a traição pretende se impor. Nunca se esqueçam que grandes avenidas ainda se abrirão por onde passará o homem livre para construir uma sociedade melhor.
Viva o Chile! Viva o povo! Viva os trabalhadores!
Estas são as minhas últimas palavras e tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão, tenho a certeza de que, pelo menos, será uma lição moral que castigará a perfídia, a covardia e a traição.
Mensagem de Salvador Allende transmitida pelo rádio no dia 11 de setembro de 1973. Extraído de Contre la tyrannie. Paris: Seuil, 2010.
Notas
1 L’Illustration. Années 1909-1913, Le Livre de Paris, 1988.
2 A primeira geração de partidos que se autoproclamam marxistas-leninistas nasce durante a década de 1920: PC chileno, equatoriano, argentino, uruguaio, brasileiro e mexicano (1922), cubano (1925), nicaraguense (1928), salvadorenho (1929), costa-riquenho e colombiano (1930), paraguaio (1933) e haitiano (1934).
3 O conceito de socialismo indo-americano refere-se à perspectiva indigenista do autor. Anniversaire et bilan. Lima: Amauta, 1928; citado por Michael Löwy em Le marxisme en Amérique Latine, de José Carlos Mariátegui aux zapatistes du Chiapas, Actuel Marx, nº 42, Paris, 2007.
4 Citado por Antonio Moscato em Le combat internationaliste et antibureaucratique du Che, Quatrième Internationale, Paris, nº 26-27, dezembro 1987.
5 Doutrina segundo a qual os Estados Unidos, estando ameaçados pela instauração eventual do “comunismo” em algum país da América Latina, devem combater, por intervenção direta ou indireta, as diversas tentativas nacionais de mudar a ordem estabelecida.
6 Carlos Fonseca Amador, Tomás Borge e Silvio Mayorga, militantes do Partido Socialista da Nicarágua.
7 General que, em 1930, expulsou as tropas norte-americanas da Nicarágua, após quatro anos de guerrilha. Foi assassinado por Somoza em 1934.
8 O capital, livro I (1867).
9 Théorie de la violence, em Anti-Dühring, 1878.
10 Primeira Conferência Latino-Americana de Solidariedade (Havana, abril 1967), Paris, 1967, sem editora.
11 Granma, Havana, 5 agosto 1979.
* Maurice Lemoine é jornalista e autor de Cinq Cubains a Miami ( Cinco Cubanos em Miami), Dom Quichotte, Paris , 2010.
** Publicado originalmente no site Le Monde Diplomatique Brasil.