Íntimo do jornalismo em livro. Um autor, não um escritor. Assim se define Fernando Morais. Ele gastou três anos, fez 20 viagens a Cuba, Estados Unidos e México, entrevistou pessoalmente 38 pessoas e leu 30 mil documentos para compor Os Últimos Soldados da Guerra Fria (Companhia das Letras, 416 págs., R$ 42). Este novo livro-reportagem, detalhista como foram A Ilha, Olga ou Chatô, o Rei do Brasil, adiciona ao formato jornalístico um sonho de infância. Neste relato, Morais nunca esteve tão próximo de suas leituras aventurosas. Aos 65 anos de idade, pode-se mesmo dizer que este autor jamais foi tão juvenil. “Se eu pudesse, só escreveria aventuras”, afirmou em entrevista por telefone a CartaCapital, no dia 16. A inspirá-lo nesta obra estão James Fenimore Cooper, o autor de O Último dos Moicanos, romance que por sinal o título do livro atual evoca, e também John Le Carré e Ian Fleming, os britânicos responsáveis por tornar a espionagem um gênero rico.
A diferença entre Fernando Morais e seus ídolos da narrativa é que esse mineiro de Mariana não se considera um escritor. Embora pesquise e inquira os entrevistados tornados personagens à exaustão, não detecta em si a capacidade ficcional. “Darcy Ribeiro dizia duas frases que sempre me inspiraram”, argumenta ele em torno da sabedoria do antropólogo. “O Brasil é ótimo, só falta alguém para contar a história.” E esta: “com a realidade que nos cerca, para que ficção?”. O jornalista sustenta jamais ter escrito uma linha que não pudesse comprovar.
Por isso, talvez, ele não reivindique status literário para seu novo livro, cujo subtítulo é A História dos Agentes Secretos Infiltrados por Cuba em Organizações de Extrema Direita nos Estados Unidos. No volume, Morais deixa de exercer a voz atuante do observador de espírito, na contramão do que sempre fez um escritor como Le Carré. Ainda assim, o brasileiro tem uma costura narrativa própria e escolhe o ponto de vista dos personagens, como em uma ficção. Seu texto como um todo, no entanto, é desossado de pretensões, quase a esperar que o cinema de um Steven Soderbergh (Onze Homens e um Segredo, Che) ou de um Fernando Meirelles (Cidade de Deus, Ensaio sobre a Cegueira) lhe providencie a carne.
Morais, contudo, não cita qualquer diretor de sua preferência, embora já tenha vendido a Meirelles os direitos de Toca dos Leões, sobre o sequestro do publicitário Washington Olivetto, aplauda a direção do cineasta Vicente Amorim para Corações Sujos e lamente ver Chatô encruado há 14 anos, “com uma caveira de burro enterrada lá embaixo”, sem jamais virar filme. Ainda que passagens de seu novo livro sejam de todo cinematográficas, como aquela em que o mercenário Raúl Ernesto Cruz León escolhe nervosamente onde depositar suas bombas nos hotéis cubanos, à moda do especialista em filme homônimo de Sylvester Stallone, Fernando Morais diz que jamais escreve para o espectador de cinema. Seu objetivo é o de cativar, ou jamais chatear, apenas quem o lê.
Ao leitor, então, esse autor oferece uma rara fluência narrativa, que surpreendentemente bastante lhe custa. “Escrever, para mim, é um sofrimento muito grande”, diz, ocupado em transpor, ao leitor, a situação que ele mesmo viveu ao fazer suas descobertas jornalísticas. No entanto, é outra a sua disposição durante a apuração. Ele se viu “com a boca cheia d’água” ao entrevistar, como neste livro, um mercenário no corredor da morte de Havana (ele diz ter feito todas as entrevistas para Os Últimos Soldados da Guerra Fria). E, do leitor, Morais exige toda a cumplicidade e toda a crença, já que seus achados informativos não têm nota de rodapé.
Este livro, para o qual o autor teve o adiantamento da editora e o dinheiro obtido com a venda dos direitos para o cinema, adquiridos antecipadamente pelo agente Rodrigo Teixeira, começou a ser imaginado em 1998. Naquele ano, chamaram a atenção de Morais a prisão e o julgamento, em Miami, de cinco agentes secretos cubanos pertencentes à Rede Vespa, que se infiltrava nos grupos anticastristas da Flórida para impedir ações terroristas em Cuba. Os atentados eram a maneira que os contrarrevolucionários encontravam para desestabilizar o regime cubano e desacreditar o turismo, importante fonte de renda para o país desde o fim da União Soviética, em 1991.
Os contras se serviam da fé de exilados na cidade norte-americana, como a cantora Gloria Estefan, para lhes arrancar o dinheiro supostamente destinado a socorrer os balseiros em fuga na fronteira. Com as vistas grossas do governo norte-americano, os integrantes de organizações como Hermanos Al Rescate ou Alpha 66 voavam desafiadoramente a bordo de monomotores Cessna pelos céus cubanos, sem lhes pedir autorização, a partir de Miami. Era comum que incentivassem, por meio de folhetos, a queima de colheitas inteiras de cana-de-açúcar. Com o tempo, reivindicavam abertamente aos cubanos depor Fidel Castro, restabelecer o status que algumas famílias tinham durante o governo de Fulgencio Batista, desfeito com a ação dos guerrilheiros em 1959, ou simplesmente instaurar o capitalismo (que intitulavam “democracia”) na ilha.
Em mãos de outro escritor, ou autor, essa narrativa sofreria o risco de se tornar um libelo de escárnio. Mas, aqui, há só apreensão e heroísmo entre os combatentes. A história começa em 1990, com a pretensa fuga de um soldado condecorado pela ação em Angola, Raúl González. Seu desaparecimento pelos céus de Cuba rumo a Miami foi explicado à família como deserção. Por cinco anos, a mulher e a filha do combatente deixaram de responder com frequência suas cartas, fiéis ao regime da ilha, sem desconfiar de que o pai de família na verdade atuava como agente duplo. Morais o escolhe porque sua história encerra o drama do espião cubano, desprovido de uma vida de , ou mesmo de uma existência de sua escolha, levado a agir para defender Cuba dos ataques.
Esses sub-007, 14 no total, não tinham canetas de multiutilidades nem tiravam o champanhe da geladeira, embora ocasionalmente se servissem das mulheres, “pela causa”. Andavam em Oldsmobiles caindo aos pedaços e até vendiam charges para os jornais para ter o direito de morar, como o líder da rede, Gerardo Hernández, condenado à prisão perpétua pelo governo norte-americano por sua ação de espionagem. A um tempo, homens de confiança do governo cubano, como Juan Pablo Roque, tinham de posar ao lado de jipes Cherokees e participar de orações ao lado de extremistas do porte de José Basulto para se enturmar e obter informes sobre ações terroristas futuras. A ação dos contrarrevolucionários foi descrita, nos anos 1990, pelo correspondente Larry Rohter, ao jornal The New York Times. Por conta dessa reportagem, Rohter teve a casa metralhada e os cabos dos freios do carro cortados.
Fernando Morais só teve acesso a toda a documentação envolvendo a Rede Vespa sete anos depois de seu desmonte, em 2005. Entre os documentos obtidos, estão os inéditos que envolvem a comunicação secreta de Fidel Castro ao presidente norte-americano, Bill Clinton, na qual o líder cubano informa sobre a ação criminosa dos contras em seu território. Toda a operação foi intermediada pelo escritor colombiano Gabriel García Márquez, que, por sua vez, redigiu um texto de quatro mil palavras, obtido por Morais, relatando sua apreensão, naquele 1998, em portar a mensagem, ao final entregue ao diretor do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca. Os espiões cubanos, que alegaram agir em reação aos ataques terroristas, foram condenados a penas que variaram de 15 anos a perpétua.
E é nos intrincados bastidores que Morais quer continuar a agir. Ele pretende tirar muitas informações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em um livro que relatará a história de seu governo. Morais é um entusiasta das transformações operadas em sua gestão. “Votei nele nas duas vezes e também na Dilma, mesmo sem conhecê-la direito, em nome da continuidade. Sou um lulista.” Morais pediu acesso ao presidente desde o início de seu governo, mas nunca o obteve. Agora, para relatar a história desses mandatos, já realizou dois encontros com o político. Ainda não sabe como o livro será. Mas tem de ser algo a seduzir o leitor, “muito subsolo, muita história subjacente”, que remeta, por exemplo, as decisões de transformação às necessidades detectadas na infância do presidente. “Não sou cientista político, não sou sociólogo. Quero apenas escrever um livro que as pessoas gostem de ler.”
* Rosane Pavam é jornalista, editora de Cultura de Carta Capital. Autora do livro O Sonho Intacto – Nas Palavras de Ugo Giorgetti e do blog Contos Invisíveis.
** Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.