Beirute, Líbano, 3/2/2012- A francesa Odette Klysinska, seguidora da fé católica, segura com força seu testamento, sentada na sala de sua casa em um bairro de Beirute, escandalizada por seu documento não ter validade legal neste país, que considera seu. Klysinska, casada com um druso (minoria religiosa do Líbano), sofre pelo “status da lei pessoal”, que proíbe católicos, sunitas e xiitas de deixarem seus bens ou propriedades para os seus descendentes de diferente confissão. “Como podem proibir uma mãe de ajudar seus filhos depois de morrer? É inconcebível”, declarou, incrédula, à IPS.
A lei pessoal do Líbano, que inclui casamento, herança e divórcio, é regida por dez códigos religiosos diferentes, aplicados a 17 grupos religiosos, vários deles sujeitos a uma única jurisdição. A lei é consequência do Império Otamano e do regime colonial, segundo a advogada libanesa Amal Takieddine, e foi fonte de sangrentas guerras vividas pelo Líbano.
O Império Otomano da década de 1830 deu a judeus, armênios, cristãos ortodoxos e muçulmanos sunitas a autoridade exclusiva sobre a lei de família, explicou Amal. Nos primeiros anos do Século 20, as potências europeias ampliaram a quantidade de seitas reconhecidas no Líbano para 17, deixando a uns poucos líderes religiosos as liberdades civis.
Klysinska não é a única que passa por esta situação. Uma grande quantidade de pessoas de diversas religiões e origens sente o peso da rígida legislação. Hassan, que não quis dar o nome completo, é de origem sunita, mas teve de se tornar xiita para que sua filha de 20 anos pudesse herdar seus bens. A comunidade sunita proíbe os testamentos e só permite que a mulher recebe uma fração específica da herança familiar, o resto fica com os filhos homens.
A jovem drusa Nibal Khodr precisou enfrentar uma difícil situação quando seu marido morreu em um acidente e ela não pôde ter a guarda sozinha nem a custódia de seu filho. Agora, cada decisão econômica que toma, em representação de seu filho mais novo, exige a aprovação, por escrito, de um clero druso local ou de um xeque. “O sistema da lei pessoal é arcaico e trata as pessoas como sub-humanas. Felizmente tenho outra nacionalidade que me dá certa proteção”, ponderou Klysinska.
Segundo Tony Daoud, diretor da Chaml (Jovens cidadãos libaneses não violentos e não sectários), a maioria das leis deste país nega às mães a guarda exclusiva dos filhos após a morte do marido. Além disso, seus direitos limitados podem ser facilmente revogados com argumentos como “duvidosa reputação” ou se voltam a casar.
Essas leis também sufocam liberdades básicas, como o direito de decidir como dispor dos restos de um familiar. As comunidades ortodoxas e muçulmanas não permitem a cremação, mesmo que em vida isso tenha sido declarado explicitamente. A prática, porém, é aceita pela Igreja Católica e pelos protestantes. “Esta situação gerou desigualdade entre as pessoas e favorece a confusão”, alertou Takieddine.
A legislação impede Klysinska de incluir em seu testamento sua filha drusa, mas os homens dessa comunidade podem deixar seus bens em herança para quem quiserem. Quando não há testamento, os assuntos relativos à herança são direcionados pela lei islâmica, pela qual os descendentes homens têm direito ao dobro da parte correspondente às mulheres da família. Já as igrejas cristãs tratam homens e mulheres por igual quanto às leis de herança matrimonial.
“Diante da falta de uma lei clara para todos, as pessoas recorrem a vazios legais na legislação existente, como se converter a outra religião ou vender em vida os bens para seus filhos”, contou Takieddine.
Em uma tentativa de reformar o sistema, a Chaml contribuiu com um projeto de lei sobre casamento civil, adoção e herança que foi enviado ao parlamento em 2011 e está em estudo em uma comissão legislativa. Não surpreende a forte oposição de organizações religiosas, como o xiita Hezbolá (Partido de Deus) e o sunita Hez al-Tahrir, à proposta que, segundo elas, “contradiz a sagrada shariá” (lei islâmica). No entanto, “uma lei civil sobre o status pessoal é um dos principais pilares de um Estado civil e unificado”, ressaltou Takieddine.
A multiplicidade de leis a respeito criou uma sociedade em que as pessoas se identificam mais com comunidades religiosas do que com o próprio Estado, dando-lhes maior controle sobre as liberdades civis. “Todo sentimento de parentesco e lealdade na sociedade se concentra nos grupos religiosos”, comentou Takieddine. A sanção de uma lei civil pode corrigir este problema, bem como promover o tão necessário diálogo e unidade entre as comunidades, que ainda se recuperam de uma guerra civil de 15 anos, que aconteceu entre 1975 e 1990.
Uma legislação civil contribuirá para libertar os jovens do controle sectário em um país dividido pela religião, o que pode levar a um relaxamento das filiações confessionais e do poder político sem restrição das comunidades religiosas. “Muitas das guerras no Líbano têm profunda origem na lei pessoal do país, que nutre um sentimento de temor entre os membros de várias comunidades. O casamento civil e a unificação de uma lei civil se traduzirão em uma sociedade mais estável que tenha liberdade de escolha”, concluiu Daoud. Envolverde/IPS