“A situação dos povos em isolamento voluntário, que são mais de 70 referências no Brasil, é grave”, afirma Sydney Possuelo, presidente da Funai durante o governo Collor.
Presidente da Funai durante o governo Collor, Sydney Possuelo foi o responsável pela demarcação da terra indígena Yanomami. É tido como criador do departamento de índios isolados da Funai (atual Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato), responsável por institucionalizar a postura de não-contato com os povos indígenas em isolamento voluntário.
O tema é complexo, e hoje, a situação dos povos em isolamento voluntário, que são mais de 70 referências no Brasil, é grave. Em várias situações, como entre os awa-guaja no Maranhão, ou os Piripkura no norte do Mato Grosso, ou grupos isolados Yanomami, a situação é de risco grave de genocídio.
A qualquer momento, um desastre pode acontecer, com um ataque feito por madeireiros ou garimpeiros, nesses casos citados, podendo ocasionar o extermínio massivo de uma população. Ou seja: o crime de genocídio. E muitas obras do governo atingem diretamente essas áreas ocupadas por povos isolados, desde prospecção de petróleo no Vale do Javari a Usina Belo Monte. Para Possuelo, “Todo o universo indígena está a perigo, inclusive os isolados”.
CartaCapital: O que está acontecendo hoje, como explicar esse ataque aos direitos indígenas?
Sydney Possuelo: De um modo geral, a sociedade nacional nunca gostou de índio. Hoje, se soma a essa postura histórica de nunca gostar e não respeitar, a ação governamental que se alia aos tradicionais inimigos dos povos indígenas. O agronegócio, no Brasil, esta aliado ao governo. O governo está mais desmatando do que tudo. As grandes obras nacionais, hidrelétricas, que também se aliam ao governo porque é o governo que esta fazendo. Há um monte de ONG que dependem do governo, e elas não tem mais voz. Dentro da Funai não se encontra mais nenhum defensor dos índios. Aquela Funai antiga, que vários companheiros faziam da Funai um órgão de luta de defesa dos povos indígenas, hoje não existe mais.
Há ha uma convergência de fatores, vários fatores tradicionalmente anti-indígena, e todos convergem junto do governo por interesses. Uma situação que faz recrudescer a tradicional indiferença nacional com os povos indígenas. E, contra os índios, o agronegócio, o grande desenvolvimento a qualquer preço, as obras. Essas convergências se misturam com ausência de pessoas e fatores, e a própria imprensa, que antigamente era mais atuante a favor dos povos indígenas. Na imprensa, de um modo geral, os artigos são contra os povos indígenas. Não se tem vozes nacionais que se levantem na defesa. Todos calados, alimentando esse processo do governo com suas obras, a ideia do “Brasil grande” que precisa se desenvolver.
CC: Qual a ameaça dessas mudanças legislativas (PEC 215, PLP 227) para o futuro?
SP: Os índios estão mais ameaçados. Antigamente, a esperança era maior. Porque tínhamos muita atividade indigenista, demarcávamos terra, bastante vozes se levantavam na imprensa, grupos, entidades, falavam sobre os povos indígenas. Existia mais esperança. Hoje, é o contrario. A esperança diminui e aumenta as dificuldades para os povos indígenas. O resultado é que desde 1500 até hoje, com pequenos momentos mais leves na nossa historia politica, todo o processo ameaça os povos indígenas. A sociedade até entende, mas a ganancia e a possibilidade de ganhar dinheiro e fazer negócios predominam. Fatores que atuavam isoladamente, hoje estão todos juntos. Todo mundo em volta do governo, que é o elemento que converge esses interesses, que subordina a todos. Eu vejo esse governo como um dos mais nefastos com relação aos povos indígenas, desde a entrada do lula até hoje. A postura é: vamos desenvolver. O índio permanece sendo o entrave.
CC: Como esse processo de força contrário aos índios se tornou tão poderoso e influente?
SP: O polarizador foi o governo, com bilhões de reais, ele faz a estrada, e quem faz a estrada esta a favor do governo, é a empreiteira, o governo deixa desmatar, “autoriza”. E o governo alimenta essa situação porque o que eles querem é a produção de mais carne, de mais soja para mais gente criar boi na Europa e na China. Os interesses do governo convergem com parte da sociedade nacional, os construtores de estrada, os chamados desbravadores.
CC: O que pode ser feito? Ou o que deveria ser feito no Brasil?
SP: Não é simples, e não basta simplesmente mudar o governo. Historicamente, os governos de centro ou esquerda ou direita, seja qual for a tendência, sempre foram contrários aos índios. Uns mais, outros menos. Não acredito que venha um governo de centro, ou de direita, que vai transformar. É uma coisa incorporada a nossa sociedade, por vários motivos histórico. Como vamos ter um órgão a favor dos índios se o governo não se porta a favor dos índios. E não falo só do federal, mas o estadual e municipal: todos são contrários aos índios. Na época das demarcações que fizemos nos meus dois anos de presidência da Funai, tivemos uma ação demarcatória muito positiva, no governo Collor. Em um ano duplicamos a superfície de terras indígenas no brasil. Houve momento em que essa situação estava melhor, como voltar a uma atividade mais respeitosa. Como respeitar os povos indígenas se a gente não se respeita? Somos uma sociedade que tem que caminhar muito.
CC: E como está a situação dos povos indígenas isolados, tema com o qual o senhor trabalhou durante muitos anos?
SP: A situação dos índios isolados está igual a dos outros povos: de mal a pior. tudo aquilo que fizemos com a criação do departamento de índios isolados, com seis ou sete equipes funcionando, mantendo a terra, dando um pouco de sossego para os índios, tudo aquilo se perdeu. Perdeu-se a motivação porque não tem mais aquelas pessoas, que foram anuladas e mandadas embora, e a começar por mim mesmo, mas, todos os que contribuíram de alguma forma. Antes da criação desse departamento e toda a filosofia que eu implantei, cada um fazia aquilo que queria. Fizemos uma filosofia de não contato, porque são sociedades vulneráveis, e somos tão grande, porque não sermos um pouco generosos e deixá-los nas sua áreas? As frentes estão abandonadas, não tem pessoas motivadas trabalhando nelas. Os índios isolados estão tão a perigo quanto os que estão contatados. Todo o universo indígena esta a perigo, inclusive os isolados.
Eu não consigo ver lados positivos em qualquer desenvolvimento que não respeite as populações diretamente afetadas, que não considere elas, que não faça obras de atenuação dos impactos. Impactos sempre vão ocorrer, mas convém atenuar. Senão não é desenvolvimento nem sustentável nem ético.
* Felipe Milanez é pesquisador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Felipe Milanez escreve sobre meio ambiente, conflitos sociais e questões indígenas. É também pesquisador visitante na Universidade de Manchester e integra o European Network of Political Ecology (Entitle). Twitter: @felipedjeguaka
** Publicado originalmente no site Carta Capital.