No Brasil, gerar energia elétrica em centrais nucleares significa abrir mão de uma vantagem que pode colocar a indústria brasileira entre as mais competitivas do mundo.
Entretanto, por incrível que pareça, há brasileiros bem intencionados (e alguns nem tanto) propondo que “deve-se pensar como colocar as 309 mil toneladas de urânio disponíveis no Brasil em benefício da nossa sociedade”.
Ora, por que usar esse urânio para gerar eletricidade se dispomos de fontes muito mais econômicas, que, ademais, são renováveis e não oferecem riscos de acidentes catastróficos como o de Fukushima? Seria o mesmo que começar a fumar (mesmo sabendo que esse vício pode matar) só porque um fabricante oferece cigarros de presente…
De fato, imagens colhidas de satélites meteorológicos mostram que o clima da Amazônia exerce forte influência sobre os regimes hidrológicos e pluviométricos de toda a América do Sul e garante a estabilidade climática, fluvial e pluviométrica – portanto a sustentabilidade da agricultura – de todo o Brasil.
Assim, a Amazônia vale pela importância de seus próprios ecossistemas e enquanto não se acumularem e testarem suficientes conhecimentos científicos e técnicos sobre os intrincados ecossistemas regionais, a região deve ser mantida em sua integridade, evitando-se, principalmente, a pecuária extensiva, a ampliação de monoculturas de exportação (soja, milho, etc.), a exploração madeireira e a implantação de novos projetos de mineração.
Apesar da polêmica desencadeada pelas organizações ambientalistas, a alternativa mais interessante para se desenvolver a Amazônia, mantendo a sua integridade, seria a de aproveitar o potencial dos recursos naturais renováveis da região, com projetos de turismo ecológico, extrativismo e geração de energia elétrica. Além de serem excelentes geradores de empregos e uniformizarem a distribuição de renda na região, o turismo ecológico e o extrativismo dependem da integridade do ecossistema.
Quanto à geração de energia elétrica, a Amazônia tem um dos maiores potenciais do mundo e, mediante políticas inteligentes e rigorosamente aplicadas, as empresas públicas e o empresariado do setor de geração elétrica deverão se transformar nos maiores defensores do ecossistema amazônico, pois alterações causadas por desmatamentos para abrir terrenos para plantações de soja e milho, criação de gado, projetos de exploração mineral e outros comprometerão o potencial hidrelétrico, inviabilizando as próprias hidrelétricas.
De acordo com a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), o potencial hidrelétrico brasileiro é de 268 GW (gigawatt), dos quais apenas 30% estão em aproveitamento.
A região amazônica detém 65% do potencial não aproveitado. Admitamos que, por motivos de caráter social e ambiental, os planos de expansão do sistema elétrico sejam reformulados, para se limitar em 80% o potencial hidrelétrico a aproveitar na Amazônia – e que as hidrelétricas a serem implantadas naquela região alaguem 0,2 quilômetro quadrado/MW (megawatt), o que é uma hipótese conservadora, pois a maioria dos aproveitamentos existentes em outras regiões, e em construção na própria Amazônia, apresenta uma relação bem menor, entre área inundada e potência instalada. Neste caso o aproveitamento do potencial hidrelétrico amazônico ocuparia cerca de 0,4% da área da região, ou seja, menos do que os grandes projetos agrícolas ou de pecuária.
Mesmo assim o Brasil poderá adicionar uma capacidade hidrelétrica de 148,7 GW aos 79,3 GW já instalados. Somando-se a isto os 17 GW das pequenas hidrelétricas, teremos uma capacidade hidrelétrica total de 245 GW.
No entanto, as ONGs ambientalistas optam por uma posição fundamentalista, baseada no dogma de que a Amazônia é intocável. É certo que os ecossistemas amazônicos são delicados, mas isto não significa que ficarão estacionados em sua condição primordial, se é que se possa falar em condição primordial de sistemas que se vêm alterando desde a origem, como todos os ecossistemas terrestres.
Com ou sem hidrelétricas, os povos indígenas (que fazem parte do ecossistema amazônico) vão continuar com as derrubadas e queimadas de matas, tradicionais em sua agricultura. E ainda há as mineradoras, o agronegócio e os pecuaristas, sobre os quais as ONGs ambientalistas ficam silenciosas, preferindo vociferar contra o aproveitamento do potencial hidrelétrico, que poderá dar ao Brasil um sistema elétrico limpo e sustentável.
A interligação do sistema hidrelétrico com o sistema eólico permitiria que parte da energia gerada pelas centrais eólicas ficasse “armazenada”, na forma de água acumulada nos reservatórios hidrelétricos – de maneira semelhante às malhas termoeólicas de alguns países europeus, nas quais a energia dos parques eólicos permite que se economize gás natural ou óleo combustível.
Segundo o Centro de Pesquisas em Energia Elétrica da Eletrobrás, o potencial eólico brasileiro (com turbinas em torres de 50 metros) é de 143 GW. Com torres mais altas, o potencial é maior.
O sistema hidroeólico poderia operar em sinergia com usinas termelétricas a biomassa, pois a frota automotiva brasileira é em grande parte alimentada com etanol, forçando a produção do bagaço de cana em escala suficiente para alimentar termelétricas de pequeno e médio portes, totalizando, em conjunto, uma capacidade da ordem de 15 GW, segundo a União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica).
Assim, aproveitando apenas fontes primárias limpas e renováveis, o sistema interligado hidroeólicobiotérmico teria uma capacidade conjunta de 403 GW, podendo gerar 1.589 GW/hora firmes por ano, admitindo-se, conservadoramente, que o fator de capacidade do sistema integrado será igual à média ponderada dos fatores de capacidade de cada sistema isoladamente, que é 0,45.
Por outro lado, de acordo com o IBGE, a população brasileira deverá se estabilizar em 215 milhões de habitantes, por volta do ano 2.040, de modo que o sistema integrado hidroeólicobiotérmico teria um potencial suficiente para oferecer à população 7.390 kWh (quilowatt/hora) por habitante ao ano, equiparando o Brasil a países de alto nível de qualidade de vida, tais como a França, a Alemanha e a Grã-Bretanha.
A reserva de segurança do sistema hidroeólicobiotérmico seria constituída pelas termelétricas a gás já existentes nas diversas regiões do país.
Portanto, ao contrário de alguns países europeus e do Japão, que, em médio prazo, não têm melhor alternativa, o Brasil não precisa correr o risco de gerar em centrais nucleares a energia elétrica de que precisa ou precisará. Sem mencionar que as centrais nucleares são muito antieconômicas, podendo, por um lado, comprometer seriamente o equilíbrio financeiro do setor elétrico e, por outro lado, tolher a competitividade e tornar inviáveis as indústrias que dependem de energia elétrica em seus processos produtivos.
* Joaquim Francisco de Carvalho é pesquisador associado ao IEE/USP, ex-diretor industrial da Nuclen (atual Eletronuclear). Ildo Luís Sauer é diretor do IEE/USP, ex-diretor de energia e gás da Petrobrás.
* Versão ampliada de artigo publicado originalmente no jornal Valor Econômico e retirado do site Correio da Cidadania.