O senhor que entrou na sala da sede do Itaú Cultural vestindo uma camisa listrada, para receber a equipe de Carta Fundamental, tem ideias muito diferentes de educação em relação ao que estamos acostumados a ver e ouvir. Normalmente é chamado de utópico, mas para ele isto é um elogio. “Adoro ouvir isto, é apaixonante tentar uma educação diferente em um mundo baseado em mentiras”, afirma. O educador espanhol César Muñoz Jiménez, consultor internacional em infância e juventude e referência na União Europeia, esteve no Brasil para uma série de palestras e eventos do Itaú Cultural em abril. Sua especialidade, a educação integral, refere-se ao sentido amplo de integralidade, que esboça todas as frentes psicológicas do ser humano, e não simplesmente à aula que ocorre o dia todo. Nesta conversa, César Muñoz falou sobre sua teoria da Pedagogia do Cotidiano e das experiências que teve como consultor dos sistemas de ensino municipais de São Paulo (SP) e Fortaleza (CE). E elogia muito a educação infantil de Porto Alegre (RS).
Carta Fundamental: Há várias definições sobre educação integral. Como o senhor compreende esse termo?
César Muñoz Jiménez: Em primeiro lugar, penso ser necessário separar os conceitos. Há a “educação” e há o “integral”. Entende-se por educação, na cultura dominante internacional, o “conduzir o outro”. E eu não estou de acordo com ele. Para mim, a educação tem de ser um sério jogo de sedução, amor e paixão. Dizer isso nestes termos é polêmico, mas sempre tive a clara ideia de provocar. A criança jamais vai gostar da aula se não se sente querida, seduzida. Se o ato de educar refere-se apenas a uma simples transmissão de conhecimento, sem haver sentimento, não quer dizer muita coisa. Esse seria um primeiro conceito de educação.
CF: E quais seriam os outros?
CMJ: Há vários, que também não fazem muito sentido. Dizem, por exemplo, que educação é convencer o outro para que ele entenda o que se está dizendo. Há o espaço em que só há uma voz, o professor fala e os estudantes ouvem. Para mim, o fundamental para um educador é saber captar o murmúrio do aluno para entender o que se passa com ele. Os profissionais estão acostumados com o que impõe a cultura dominante, de que existem dois pilares para se educar: a palavra e a conduta.
CF: E o que seria a junção com o “integral”?
CMJ: Por educação integral entenda-se aquela que procura discorrer sobre todas as particularidades que os seres humanos possuem. Seria a educação em sua integralidade, cuidando do corpo, da mente, dos sentimentos, dos desejos. Fazer a criança se manifestar. Se basearmos nossa educação exclusivamente na palavra e na conduta da criança, deixamos muita coisa de lado, gerando deturpações. Professores classificam como estudante inteligente aquele que fala bem na aula e tem boa conduta. Mas, antes da linguagem, há expressões mais autênticas que permitem captar o murmúrio do corpo. É tarefa do professor conectar a linguagem ao sentimento, entender como as crianças pensam, como relacionam a vida delas à aula, como se comportam com um imprevisto – muito se conhece de uma pessoa pela maneira como ela se comporta em uma situação não planejada. Acontece que, ao se explorarem somente a palavra e a conduta, a criança cria artifícios para se adaptar àquilo, criando uma rede de mentiras, que, hoje, é o caminho para ser adulto em nossa sociedade.
CF: O que o senhor define exatamente como “rede de mentiras”?
CMJ: Funciona assim: um ser humano que não se sente compreendido tende a não dizer o que sente. Ele vai atuar como gostariam que ele atuasse, vai dizer o que o professor gostaria de ouvir, para não haver conflitos. Um ser humano criado sob esse prisma falso não pode ser bem educado, não vai poder chegar nunca a uma educação integral. Não estou esperando que uma criança invente a pólvora em sala de aula, claro, mas é possível explorar sua criatividade. Se uma criança que não costuma prestar atenção à aula, de repente, quando o professor aborda determinado assunto, se vira a ele e fica fascinada com aquilo, é sinal de que o professor deve trabalhar aquilo. Foi um sinal de que a paixão pode ser despertada, é uma mudança importante.
CF: E onde entra o aspecto da bagagem cultural na educação?
CMJ: É um dos pontos que fazem parte de uma educação em sua integralidade. Dei cursos em uma escola de língua espanhola no Marrocos. A maioria dos professores era de origem espanhola, e a dos alunos, marroquina. Quando organizávamos atividades, essas eram baseadas na cultura espanhola/ocidental. Havia então um choque de culturas, não era produtivo para os estudantes. Portanto, os educadores que não se introduzem na cultura das pessoas com quem dialogam não podem ensinar corretamente. Na Catalunha, há a cultura de se falar catalão, mesmo os que chegam, e lá há muitos marroquinos. Imagine se um marroquino chega em Barcelona e diz: “falar catalão não interessa à minha cultura”. Fica difícil se adaptar. É necessário entender como falam e como se comportam esses estudantes.
CF: Ou seja, não teremos uma pessoa completamente desenvolvida porque a escola hoje não desenvolve todas as particularidades do ser humano?
CMJ: Exatamente. São três os espaços reguladores da vida humana no mundo ocidental: as famílias, os espaços educativos e os partidos políticos. É claro que há exceções, mas, no geral, é uma rede de mentiras potentes. A primeira é a palavra “infância”, que vem do latim infans, que é “aquele que não fala”. Mas crianças pequenas podem falar coisas muito interessantes. Outra mentira: infância e adolescência são idades de transição. Todas as idades são de transição, pois estamos todos envelhecendo e mudando sempre. É uma soma de mentiras que continua na idade adulta. Nela somos pacientes, consumidores, usuários, nunca colaboradores, cidadãos. Então surge uma soma de não credibilidades: os adultos não creem na infância, as crianças não creem nos adultos. A grande reação disto é que os infanto-juvenis não creem neles mesmos, e que apenas estão na sala de espera para serem adultos. E os adultos estão na sala de espera da morte. Quando chegarem a adultos, vão também reproduzir esse sistema com seus filhos e seus estudantes. São os erros de uma civilização adultocêntrica.
CF: O que é exatamente a pedagogia do cotidiano?
CMJ: Este termo refere-se ao fato de que a educação é muito relacionada com os pequenos elementos da vida cotidiana. Para a cultura dominante, o trivial não é importante. É como se a vida fosse feita só de momentos importantes, quando na realidade é o contrário. Por exemplo, não se pode viver a cada dia uma grande paixão. Seria insuportável. Tenho um sistema para saber se um educador é bom ou não: peço para ele me falar de uma criança qualquer para a qual ele dá aula. Se ele disser “esse é agressivo”, não está correto. O bom educador é o que diz “essa criança está feliz, mas está dissimulando, porque, no mundo, ri para dissimular a tristeza que está dentro dela”. Mais que a palavra, a pedagogia do cotidiano é a atitude e o sentimento que estão junto das pequenas coisas.
CF: E a partir disso, como seria a escola que tenta englobar tudo isso?
CMJ: Essa escola precisa de profissionais que saibam sentir, não só escrever e falar. Têm de fazer a soma de sentimentos, a começar pelo respeito pela infância, coisa que não terão se não acreditam que a infância tem, além de direitos e deveres, capacidade para criar. O professor também precisa ter um sentimento de docência, já que a aula está construída em função da criança. Quando a criança é respeitada, tem alguém que entende seus sentimentos, ela se sente conectada a tudo aquilo. Quando participa, ela diz “isso é meu, faz parte da minha vida”. Isso, sim, vai fazer da educação dela uma atividade bem-sucedida.
CF: Existem exemplos desse tipo de educação integral que o senhor considera bem-sucedidos?
CMJ: Há conjuntos de escolas muito bem estruturadas na Espanha e na Itália. Nesta última, na pequena cidade de Reggio Emilia, perto de Milão, pelo pedagogo Loris Malagutti. Na Espanha, existe um conjunto de escolas acima da média em toda a Catalunha, que foca na sensibilidade. A qualidade das escolas municipais de zero a três anos é muito boa.
CF: Essa visão da educação com a participação total da criança não parece um tanto utópica?
CMJ: A educação integral é, sim, uma grande utopia, e temos como entendê-la não como algo impossível, mas como um objetivo a ser alcançado. Dizem muito que sou utópico, e eu respondo: “obrigado!” É apaixonante tentar uma educação nesses moldes em um mundo baseado em mentiras.
CF: O senhor já teve experiências de orçamento participativo no Brasil, nas prefeituras de Fortaleza e São Paulo. Como avalia a educação nessas cidades?
CMJ: Fiz parte do projeto de orçamento participativo nessas capitais. Houve em Porto Alegre também, mas eu não estava lá. Eram projetos com ideais muito claros que entendiam não poder haver processo sério se não fosse acompanhado de muita formação e informação das pessoas e sensibilização dos adultos, políticos e professores. Isto é diferente do que acontece, por exemplo, na Europa. Quando lá me perguntam onde vejo capacidade para melhorar a educação de maneira participativa, sempre me refiro à América do Sul, não por lá. A informalidade brasileira ajuda a participar mais.
CF: Podemos dizer, então, que, apesar de tudo, o Brasil tem boas experiências educacionais a serem mostradas lá fora?
CMJ: Na Europa, comenta-se muito sobre a experiência educacional de Porto Alegre. Aquilo foi um exemplo no qual a cidadania é realmente potente. É uma cidade referência em participação da população na educação, sobretudo de zero a três anos. E a cidade também está marcada pela experiência do Fórum Social Mundial. Quando digo a amigos que vou ao Brasil, eles se empolgam e se lembram da experiência porto-alegrense.
* Publicado originalmente no suplemento Carta Fundamental, no site da revista Carta Capital.