“Enquanto alguns ficam preocupados com árvores, que crescem em tudo o que é lugar, existem 30 milhões morrendo com malária, tifo, leishmaniose, lepra e dengue. Está morrendo gente e agora vai se preocupar que o cara corte uma arvorezinha?”
A frase acima foi proferida em uma entrevista pelo líder dos madeireiros de Sururu do Sudoeste… É, hein? Hã? Como é que é? Sério? Putz, então tá. Vamos recomeçar:
A frase acima foi proferida em uma entrevista pelo presidente da HRT Oil&Gas, Marcio Mello, empresa que detém 21 blocos de exploração de petróleo e gás natural (totalizando 48.485 quilômetros quadrados) no Estado do Amazonas e que, em breve, deve começar a produzir. O jornal Valor Econômico do dia 24 traz uma boa reportagem sobre a exploração privada de hidrocarbonetos no Amazonas, com destaque para a HRT. A Petrobras já atua há décadas na região, como na Província Petrolífera do Rio Urucu, no Município de Coari.
Provavelmente um dos objetivos da empresa na entrevista era informar que não haverá impactos ambientais e que tudo será feito de acordo com as normas. E o seu presidente me solta uma dessa? Ah, faça-me um favor! Troca já a empresa que cuida da consultoria de imagem para uma de gerenciamento de risco!
Quando visitei Urucu constatei que um poço ocupa menos que um campo de futebol e o impacto na área de prospecção é realmente pequeno. O problema é a logística de transporte do produto, que se não for fruto de investimentos pesados e de um profundo planejamento, pode colocar em risco o ecossistema e as comunidades do entorno. Há um gasoduto entre Urucu e Manaus cuja implantação foi acompanhada de perto pela sociedade, que pressionou a Petrobras para os riscos sociais e ambientais que ele poderia causar, evitando assim as velhas catástrofes envolvendo óleo bruto.
O projeto de outro gasoduto, ligando Urucu a Porto Velho, também está recheado de críticas sobre os riscos de desmatamento descontrolado, contaminação da água e do solo, e a alteração da vida das populações indígenas e ribeirinhas. O professor Aziz Ab’Sáber, um dos maiores geógrafos brasileiros, chegou a fazer um alerta sobre a obra: “com uma extensão dessa e com uma estrada de apoio, abre-se um caminho fantástico para os especuladores. Daí fazem ramais, sub-ramais, loteiam, vendem, começam a extração de madeira”.
Dito isso, e considerando os desafios ambientais que as grandes empresas minerais terão que enfrentar neste século, muito me admira uma declaração dessas, que vincula qualidade de vida a uma única forma de crescer economicamente. Quase uma chantagem socioambiental.
Não faltam estudos mostrando que o desmatamento é que aumenta a incidência de malária e não a manutenção da floresta. Por exemplo, uma pesquisa publicada na Emerging Infectious Diseases, no ano passado, aponta que uma mudança de 4,2% de aumento no desmatamento está associado a um aumento de 48% na incidência de malária. Ou seja, a ocorrência da malária é mais intensa em regiões de fronteira agrícola, no contato do ser humano com áreas preservadas. Repito, não é a abertura de poços o problema, uma vez que os impactos trazidos por uma obra são maiores que as estradas de serviço abertas no meio da floresta e os postos de bombeamento. Também devem ser considerados os fluxos migratórios indiretos, a ocupação desordenada, enfim, o pacote inteiro.
Do jeito que foi exposto pela declaração, parece que a floresta é uma sucursal do inferno na Terra e a exploração mineral trará a redenção (Aleluia, salve!) a esses caboclos que estão rastejando doentes pelos cantos da mata – quando sabemos, em verdade, que é a chegada desordenada de empreendimentos que geram a maior parte desses problemas. E não estou pensando no pobre do bagre-caolho-sete-barbas-de-peito-escarlate que habita o fundo do Lago Iitangané que é afetado por esses processos, mas sim no povo de lá.
Um exemplo? No coração do Amazonas, banhado pelo Rio Solimões, Coari era igual a qualquer outro município no meio da maior floresta tropical do planeta, com uma pequena população. A realidade local começou a mudar quando foram descobertos petróleo, de excelente qualidade, e uma imensa jazida de gás natural cerca de três mil metros abaixo do solo. A partir daí, a Petrobras implantou em suas terras a Província Petrolífera do Rio Urucu, tornando possível a prospecção, o transporte e o escoamento do material até o Solimões e, de lá, para a Refinaria de Manaus.
Dezenas de milhões foram pagos em royalties à cidade. Contudo, a compensação financeira pela exploração do subsolo não foi sentida pela população mais vulnerável. Veio mais gente, mas a estrutura para recebê-los não mudou. “Não houve mudança significativa com a vinda da Petrobras. Nas comunidades por onde passa o gasoduto, as pessoas não sabem para quem vão os benefícios”, afirmou para nós, tempos atrás, Joércio Golçalves Pereira, bispo da Prelazia de Coari. Havia reclamações sobre a falta de saneamento básico, de água potável e o acúmulo de lixo nas vias. Diante do quadro de precarização da saúde, cresce o número de casos de doenças sexualmente transmissíveis, como a aids, além da violência. A prostituição infantil também é mais um desafio à espera de solução em Coari.
Em maio de 2008, uma grande ação da Polícia Federal investigou uma quadrilha acusada de participação num suposto esquema de desvio de verbas públicas na Prefeitura local. Segundo a Polícia Federal, a organização criminosa se apropriava de recursos repassados pelo governo federal e pela Petrobras referentes à exploração de petróleo e gás no município.
Os lucros advindos da implantação de grandes empreendimentos de exploracão mineral permanecem na mão de poucos, enquanto o prejuízo social e ambiental decorrente da extração é dividido por todos. E isto se reproduz em outros lugares, do Recôncavo Baiano ao Sertão nordestino e às cidades que se beneficiam da exploração marítima, ricos em royalties do petróleo e derivados, mas com baixo índice de desenvolvimento humano. Fiquemos, pois, de olhos abertos para essa nova fronteira aberta pela HRT, e vamos exigir transparência desde o início, enquanto o produto está no subsolo.
E, verdade seja dita, em uma coisa o seu presidente tem razão: na Amazônia, está morrendo gente. Mas não é pelos motivos que ele acredita.
* Publicado originalmente no Blog do Sakamoto.