Vários tiros. E morte indeterminada.

Pesquisa do Ipea encontrou falha nas informações sobre homicíos do Rio de Janeiro que alteram completamente a realidade da violência no Estado; segundo pesquisador, há um incentivo para produção de dados errados. Foto: Libertinus

Uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) indica que as estatísticas sobre homicídios no Rio de Janeiro estão deterioradas. Ao reanalisar os dados, o estudo conclui que a maior parte das mortes indeterminadas deveria ter sido classificada como homicídios. O resultado é um número muito alto de mortes sem determinação e que alteram de 28% para 3,6% a redução na taxa de homicídios no Estado.

Daniel Cerqueira, o autor do estudo, afirma: ainda que a deterioração seja evidente, as causas não são identificadas em sua pesquisa.

A ex-diretora do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP), Ana Paula Miranda, traz uma possível explicação para o fenômeno: a partir de 2007, a transparência deixou de ser prioridade da Secretaria de Segurança Pública.

O ISP é responsável por monitorar os dados fornecidos pela Polícia Civil sobre ocorrências violentas. Se for detectado algum erro, ele é comunicado e a própria polícia deve rever a informação. Miranda, que trabalhou na organização até o início de 2008, aponta para uma modificação na maneira de se lidar com dados e transparência no Rio de Janeiro entre 2006 e 2007.

De 2006 para 2007, ano em que mudou a gestão tanto do governador Sérgio Cabral – e quando José Mariano Beltrame assumiu a Secretaria de Segurança Pública – houve, segundo Miranda, uma mudança no encaminhamento do procedimento, com um aumento da burocracia. Até 2006, os encaminhamentos eram feitos por e-mail e por funcionários. Depois, foi exigido que tudo fosse feito por ofícios escritos pela diretoria.

“Eu senti que estava cada vez mais difícil fazer essas correções. Não havia preocupação que isso fosse uma prioridade. É um ano em que o auto de resistência sobe bastante”, conta ela.  Enquanto as coisas ficavam mais lentas, explica, ela sentia que a transparência não era uma prioridade daquela gestão. “O secretário não tomou isso como uma causa sua. O secretário anterior ligava para perguntar se estava tudo certo, se estávamos conseguindo fazer, se vai ter alguma resistência. Isso parou de acontecer. Não era uma ação. Era uma omissão”, diz.

De uma hora para outra, houve um aumento do número de obstáculos para realizar o seu trabalho. “Até chegar a situações que eu nunca tinha vivido antes”, conta ela, ao lembrar de um caso em que um delegado classificou como morte indeterminada um cadáver com vários tiros, uma clara indicação que não poderia ser nem suicídio nem acidente. Ao solicitar a mudança na classificação para o delegado, no entanto, ele respondeu  que não faria. “E o ISP não podia fazer nada, porque meu poder era limitado. A não ser reclamar, reclamei e fiquei ‘no vácuo’”, diz ela.

A pesquisa do Ipea traz dados da Secretaria de Saúde. Apesar de utilizar métodos diferentes dos da polícia, as duas bases de informação são conectadas. Isto porque existe uma troca de dados entre as duas instâncias. Miranda explica que, ao registrar os casos de maneira errada, a polícia ganha tempo. “Quando ele instaura já como homicídio, ele tem um prazo para remeter ao Ministério Público. Nesses outros tipos, ele ganha tempo para fazer o inquérito. Aí quando faz o auditamento, ele começa a correr”, conta. “Os delegados fazem esse registro errado. Já sabem disso, pensam isso e fazem isso dessa forma”, diz.

Coincidência ou não, 2007 foi o ano em que mais ocorreram casos de autos de resistência, isto é, quando o policial comete homicídio por ter encontrado resistência do perseguido, fato que inclusive aumentou a demanda de trabalho do ISP. Naquele período, foi registrado o maior número absoluto (1.330) e a maior taxa por cem mil habitantes (8,2) de mortes deste tipo, elevando de 2,9 para 3,3 por dia. “Posso especular: isso pode levar a resistência maior da polícia. Porque a policia é muito sensível a esse assunto”, diz.

No início de 2008, conta Miranda, ela foi exonerada do cargo depois de divulgar dados públicos do ISP sobre autos de resistência a um jornalista que nunca publicou a matéria. As razões de seu afastamento nunca foram dadas. Em seu lugar, entrou ex-comandante do Bope (Batalhão de Operações Especiais) e ex-comandante da Polícia Militar, Mário Sérgio Duarte (que deixou o posto após a morte da juíza Patrícia Acioli).

Sobre a pesquisa do Ipea, Beltrame afirmou na segunda-feira 24 que se reuniria com a Secretaria de Saúde, com o Instituto de Segurança Pública (ISP) e o Departamento de Polícia Técnica do Rio para comparar os dados do estudo de Cerqueira e “encontrar a verdade nos fatos”, segundo matéria publicada no jornal O Globo.

* Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.