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Violência de gênero, a outra cara da fome

Recém-chegados a Dadaab esperam atendimento médico. Foto: Isaiah Esipisu/IPS

Dadaab, Quênia, 7/10/2011 – Quando Aisha Diis (nome fictício) fugiu de sua casa na Somália devido à fome, não estava plenamente consciente dos perigos que corria. Em abril, ela abandonou a aldeia de Kismayu, a sudoeste de Mogadíscio, capital somaliana, para se dirigir com seus cinco filhos ao acampamento de refugiados de Dadaab, na Província Nordeste do Quênia.

Estava em um grupo com muitas mulheres e crianças. Quatro de nós éramos da mesma aldeia, por isso nos relacionamos como se fôssemos uma família”, contou à IPS. “No caminho paramos para fazer um pouco de chá, já que as crianças estavam muito cansadas e com fome. Uma mulher ficou com eles enquanto três de nós fomos pegar lenha”, acrescentou. “Foi aí que fomos sequestradas por um grupo de cinco homens que nos arrancaram a roupa e nos violentaram várias vezes. É algo que não poderei esquecer. Mas não gostaria que meus filhos soubessem”, disse entre lágrimas.

Lamentavelmente, o caso de Diis e das outras duas mulheres que a acompanhavam não é único. A viagem que fazem diariamente centenas de mulheres cansadas, fracas e desnutridas com seus filhos rumo ao acampamento de Dadaab é angustiante. Muitas levam seus filhos menores presos às costas. Nada conseguiram salvar de suas casas na Somália. Só algumas afortunadas podem transportar pequenos pertences se possuem um burro de carga. Raramente, ao chegar, desejam falar sobre o que lhes aconteceu no caminho.

A maioria se registra como refugiada e passa por exames médicos com seus filhos. Depois são alojadas em uma barraca de campanha com equipamento doméstico básico. As tendas não têm porta nem janela, nem mesmo cama ou algum móvel. Mas, de todo modo, os refugiados a chamam de lar, agora e, talvez, por muitos anos ainda. Alguns nasceram aqui em 1991, quando foi criado o acampamento, e não conhecem outro lugar.

Mesmo depois de instaladas, muitas mulheres não se animam para falar da violência que sofreram até chegarem ao acampamento. “A violência de gênero é a outra cara da fome”, disse Sinead Murray, administradora de programas em Dadaab do Comitê Internacional de Resgate (IRC).

“Na rápida avaliação feita em Dadaab e divulgada pelo IRC em julho, a violação e a violência sexual foram mencionadas como as preocupações mais angustiantes das mulheres e meninas quando fugiam da Somália, problemas que continuam, embora em menor grau, nos acampamentos”, disse Murray à IPS. “Algumas entrevistadas para o estudo disseram que outras mulheres e meninas eram violentadas diante dos maridos e pais, por homens com armas. Outras foram obrigadas a ficarem nuas e sofrerem abusos por vários homens”, acrescentou.

Entretanto, Diis e as outras duas mulheres que foram violentadas junto com ela são das poucas somalianas que se animam a denunciar a violência. No caso de Diis, teve coragem por ser viúva e não temer represálias contra sua família. “Não tinha medo de falar sobre meu caso às autoridades médicas por não ter marido”, disse Diis. Seu marido foi morto a tiros por desconhecidos na Somália há sete meses.

“Muitas mulheres foram atacadas por homens armados quando se dirigiam ao acampamento de refugiados, especialmente as que viajavam em grupos sem homens”, disse Ann Burton, funcionário de saúde em Dadaab do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur). “Contudo, a maioria é reticente em denunciar esses casos porque temem que suas famílias as culpem ou que as comunidades as rejeitem, ou, simplesmente, por terem vergonha de falar sobre isso”, acrescentou.

Depois de denunciar o caso, Diis recebeu profilaxia por pós-exposição, um tratamento antirretroviral de curto prazo usado para reduzir a probabilidade de uma infecção por HIV, vírus causador da aids. “Após informar meu caso recebi remédios e fiz exames a cada três meses, depois disso me confirmaram que não havia contraído o HIV. Essa era uma das minhas maiores preocupações”, contou Diis, explicando que também recebeu assessoria. As outras duas mulheres violentadas junto com ela receberam o mesmo tratamento.

Diis disse conhecer as outras mulheres violentadas diante de seus familiares, mas que não denunciaria os casos ao pessoal médico do acampamento. Não informar a violação só aumenta o sofrimento das vítimas. “As sobreviventes, em geral, não recebem atenção fundamental que salva vidas por guardarem o segredo”, alertou Burton. Entre janeiro e julho forma registrados apenas 30 casos de violação, segundo o Acnur. No entanto, especialistas médicos no acampamento garantiram que os casos reais são muitos mais.

Uma vez que chegam a Dadaab, algumas continuam sofrendo violência de gênero inclusive por parte de seus familiares mais íntimos. Murray disse que isto inclui casamento forçado ainda bem jovem e “sexo de sobrevivência”, quando as mulheres são obrigadas a oferecerem seus corpos para conseguirem produtos para suas necessidades básicas.

Embora os casos de violência de gênero sejam menos frequentes dentro dos acampamentos, algumas mulheres disseram à IPS que se sentem inseguras e com medo à noite. “Os acampamentos não têm barreiras, e também não podemos fechar nossas barracas durante a noite, qualquer coisa pode acontecer”, disse Amina Muhammad, que vive em Dadaab. O maior risco no acampamento, segundo as mulheres disseram à IPS, é quando viajam longas distâncias em busca de lenha. Envolverde/IPS