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A violência de Nova York se cura em um sofá laranja

Agentes de extensão da Operação SNUG conversam com um jovem de seu programa, no centro do Harlem, em Nova York. Foto: Kim Jenna Jurriaans/IPS
Agentes de extensão da Operação SNUG conversam com um jovem de seu programa, no centro do Harlem, em Nova York. Foto: Kim Jenna Jurriaans/IPS

 

Nova York, Estados Unidos, 5/5/2014 – Os ferimentos à bala diminuíram pela metade no bairro do Harlem, na cidade de Nova York, graças ao trabalho preventivo da Operação SNUG, uma organização que aplica uma estratégia epidemiológica contra o crime, para contê-lo e erradicá-lo com se fosse um vírus. São 16 horas de uma tarde ensolarada no Harlem e Solideen Rann, de 19 anos, está esparramado em um sofá de segunda mão na entrada de uma velha loja de vidro e alumínio no bulevar Malcolm X.

Seus gestos não escondem que participa de má vontade de uma conversação com Dedric Hammond, de 36 anos, que ocupa o outro extremo do sofá forrado de veludo alaranjado. “Faça isso por mim e te deixo em paz”, diz Hammond, inclinando-se para Rann. “Já não me meto nessa porcaria”, responde o jovem demonstrando incômodo, enquanto tenta, sem êxito, que o homem de 1,93 metro de altura o deixe em paz. “Só dessa vez. Isso é tudo”, continuou Hammond.

Em um universo próximo, esse roteiro de uma conversação entre dois homens intimamente familiarizados com o lado mais escuro do buliçoso Harlem poderia supor um assunto turvo com um resultado perigoso. Mas a conversação tem a ver com a organização de uma mesa de discussão e Hammond, conhecido no bairro como Beloved (Amado), pressiona Rann para que assuma seu papel como modelo a ser seguido por outros jovens.

Ambos estão sentados no escritório da Operação SNUG (o inverso de GUNS, armas em inglês), integrada por uma equipe de “interruptores” que se propõem romper o ciclo da violência juvenil nesse trecho do centro do Harlem, entre as ruas 125 e 137. Aqui, aproximadamente uma em cada três famílias vive abaixo da linha da pobreza.

“Essa porcaria” a que se referia Rann são as brigas de rua pelas quais ele foi preso e pelas quais morreu seu melhor amigo. Essas ruas e outras semelhantes atuam como um funil pelo qual cerca de 24 mil jovens entram a cada ano no sistema de justiça juvenil do Estado de Nova York, um dos mais rigorosos dos Estados Unidos, no qual os adolescentes podem cumprir sua condenação em prisões para adultos a partir dos 16 anos. Metade das prisões acontece na cidade de Nova York, onde 52% dos casos de delinquência juvenil implicam delitos contra terceiros.

Os telefones celulares tocam a toda hora no escritório da SNUG, com mensagens de líderes comunitários, pais preocupados e jovens que dão informação sobre conflitos prestes a acontecer entre grupos rivais. Em questão de minutos o pessoal da SNUG sai à rua para intervir e mediar entre os grupos. Vão às esquinas e aos parques públicos, às salas de espera dos hospitais e aos corredores das moradias públicas.

Quando alguém dá entrada ao hospital do Harlem com uma punhalada ou ferimento de bala, os primeiros a serem chamados para convencer a vítima, seus amigos e familiares a não cometerem represálias é o pessoal da SNUG, antes mesmo da polícia. “Converso com todo o bairro”, contou Hammond à IPS sobre a contenção que realizam depois de um fato violento. “Falo com sua gente, com suas mães, quem quer que seja que lhes provoque uma lágrima nos olhos”, afirmou. “Quando descobrimos as coisas que os comovem, é quando podemos começar a conversar e iniciar o processo de cura”, acrescentou.

É um processo que Hammond e sua equipe de dez interruptores conhecem de primeira mão. Cada um deles foi membro de um dos 60 grupos do Harlem, e todos têm condenações nas costas. “Em minha equipe há gente que matou”, revelou Hammond, rodeado por flores de plástico e acessórios que a equipe utiliza para simular funerais, uma das muitas táticas que empregam para que “seus meninos” vejam a devastação que suas ações podem provocar.

Hammond conseguiu sua primeira arma para proteger seu irmão mais novo aos 13 anos, passou oito na prisão e foi ferido à bala duas vezes depois de abandonar as gangues. A experiência de ter estado nos dois lados das armas de fogo é fundamental para que a SNUG possa se ligar aos jovens de alto risco, segundo Beloved, cuja reputação como atirador lhe valeu o apelido de Bad News (Más Notícias).

“Antes, quando queria recrutar alguém ia à sua igreja, sua escola, na casa de sua mãe, na quadra de basquete. Assim as estratégias que usávamos para fazer roubos e outros delitos são as mesmas que usamos agora para que nos escutem. Temos que apaziguá-los”, detalhou Hammond.

“Eles entendem de maneira inata o ritmo da rua”, assegurou Aarian Punter, gerente de projetos da Serviços de Justiça Restauradora na Unidade do Harlem da New York City Mission Society, uma organização comunitária que oferece serviços educacionais e programas extracurriculares para a juventude. “Sabem quando devem ir à rua, ir para este ou aquele lado”, firmou.

As semanas de 80 horas de trabalho não são raras para os agentes de extensão da SNUG. Além das intervenções em casos críticos que realizam nas 24 horas do dia, também se dedicam a conversas pessoais no sofá laranja, ao acompanhamento dos meios sociais para detectar sinais de disputas e às visitas espontâneas à sorveteria como forma de impedir que dois grupos rivais se cruzem. Tudo isso é parte do quebra-cabeças para deter a transmissão viral da violência.

A Operação SNUG deriva do modelo “Cura para a Violência” criado pelo epidemiologista Gary Slutkin. Esse cientista norte-americano assegura que os grandes focos de violência, como o genocídio em Ruanda (1994), seguem os padrões das doenças infecciosas e podem ser contidos, e inclusive erradicados, se forem tratados como um vírus. A chave, segundo Slutkin, está em deixar de submeter à humilhação pública as pessoas “más” e, por outro lado, identificar os transmissores da violência para modificar seus comportamentos pessoais e as normas da comunidade.

No Estado de Nova York, a grande maioria dos jovens em centros de reclusão juvenil, 83% em 2010, é afrodescendente ou hispânico. Além disso, 89% dos homens e 81% das mulheres terão reincidido ao completarem 28 anos. Estatísticas como essas evidenciam os estragos que geram a violência, as drogas e a pobreza crônica nas comunidades de minorias étnicas.

A crise atingiu seu pico durante a época do crack (derivado da cocaína) nas décadas de 1980 e 1990, quando Nova York adotou leis excessivamente punitivas contra as drogas, conhecidas como Leis Rockfeller, que enviaram toda uma geração de homens para a prisão e provocaram um efeito dominó que repercute até hoje, afirmou Punter. “Não se tem nem ideia do que viram esses rapazes, viram seus pais irem para a cadeia por 20 anos, suas mães destruídas pelo crack. Há toda uma geração de jovens cujos problemas nunca foram tratados”, lamentou.

Nos últimos anos, a polícia de Nova York concentrou sua atenção de maneira excessiva sobre a população afrodescendente e hispânica, por meio de sua polêmica política de Stop and Frisk (Deter e Revistar), que penaliza ainda mais as minorias de baixa renda. Mediante o trabalho com a SNUG e outras organizações, Punter e seus colegas objetivam mudar a relação dos jovens com o sistema penal e proporcionar-lhes oportunidades educativas que lhes permitam imaginar uma vida além das ruas.

A Operação SNUG encontrou seu lar no contexto da Mission Society depois que numerosas organizações consideraram que o programa era muito arriscado para elas. Mas sem a interrupção da violência poucos serviços têm oportunidade de prosperar, pontuou Hammond. “Se você constrói um centro de esporte e ontem atiraram em mim, e quem fez o disparo está no centro hoje, pode apostar que irei lá atirar nele”, explicou.

Segundo um estudo de 2013 feito pelo Departamento de Saúde de Nova York, os ferimentos à bala caíram de 52 para 26 no período de um ano dentro do objetivo demográfico da SNUG. Embora seja difícil atribuir às reduções a um único fator, Rann não tem dúvidas de que “sem a SNUG um monte de rapazes teria sido morto”. Hoje em dia, Rann tem dois trabalhos para manter seu filho recém-nascido e pensa fazer estudos terciários.

Por fim, depois de uma hora de conversa, seu mentor durante três anos não conseguiu convencê-lo a falar em público na mesa-redonda. Mas Hammond não vê isso como uma derrota. “É como trabalhar com argila. Você aperta, molda e quando consegue o que quer continua trabalhando dessa forma”, ressaltou. Envolverde/IPS