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Visita surpresa a prisões argentinas para prevenir torturas

Buenos Aires, Argentina, 18/12/2012 – Delegados do Estado argentino e de organizações não governamentais visitarão prisões sem avisar previamente a partir do próximo ano, para prevenir que os detentos sejam vítimas de abusos que persistem em plena democracia e com consequências muitas vezes fatais. O Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes, criado por lei, formarão uma equipe para realizar visitas periódicas e de surpresa a prisões, delegacias, hospitais psiquiátricos e instituto de menores.

Os integrantes da equipe poderão cobrar informação sobre os presos, se reunir com familiares, citar funcionários do sistema penitenciário e portar um registro de habeas corpus apresentados para salvaguardar a segurança e as condições devidas de detenção. A lei, aprovada no final de novembro, colocou o país em sintonia com um compromisso internacional já assumido.

Em 2004, a Argentina ratificou o Protocolo Facultativo da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas e Degradantes, em vigor desde 2006, que considera essas práticas “violações graves dos direitos humanos”. Este Protocolo, gestado no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), foi desenhado para tornar efetiva a proteção de pessoas privadas de liberdade diante da tortura. Criou um Subcomitê Internacional, que acompanha estes temas, e determinou aos Estados-partes que estabelecessem um mecanismo nacional que garanta o sistema de visitas às unidades prisionais.

O tratado fixava prazo para a adequação do Estado a esta norma, que foi cumprido pela Argentina em 2007, um ano depois da entrada em vigor do Protocolo. A lei que cria o mecanismo demorou, então, cinco anos para ser sancionada, devido a desacordos sobre a formação do órgão de controle.

Em conversa com a IPS, a advogada Eva Asprella, coordenadora da Equipe de Trabalhos sobre Privados de Liberdade, do não governamental Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), explicou que as dificuldades surgiram em razão da organização política da Argentina, que é um país federativo mas com autonomias provinciais. O debate terminou com o desenho de um Comitê Nacional de 13 membros e um Conselho Federal integrado pelos mecanismos locais (regionais ou provinciais). As duas entidades operarão de forma articulada e haverá também representantes de mecanismos locais no Comitê Nacional.

Esse Comitê estará integrado pelo Procurador Penitenciário, por um delegado da Secretaria de Direitos Humanos, seis representantes eleitos pelo parlamento mas que não devem ser legisladores, dois representantes dos mecanismos locais e três especialistas da sociedade civil. “Este era um passo necessário, embora não suficiente, para a prevenção”, explicou Asprella. “É uma maneira de colocar um pé nas prisões, ultrapassar esses muros, estabelecer um diálogo, ver o que acontece dentro, fazer recomendações, recorrer à justiça com habeas corpus”, destacou.

A legislação a respeito dará amparo a numerosas pequenas organizações que operam nas províncias com muitas dificuldades, disse a advogada. “O CELS é conhecido e não tinha problemas, mas há grupos aos quais era negada a entrada nas prisões de maneira arbitrária”, denunciou Asprella. É o caso da Rede de Direitos Humanos da província de Corrientes, que tem seu acesso às prisões proibido, e da Associação Zainuco, da província de Neuquén, acrescentou.

Angie Acosta, uma das advogadas da Zainuco, declarou à IPS que, para a organização que representa, “a criação do mecanismo é fundamental para o controle” nas unidades. “Desde que começamos a denunciar torturas, tivemos a entrada proibida” na Unidade Número 11 de Neuquén, capital da província de mesmo nome, contou. “Diziam que era por razões de segurança, mas as igrejas podiam entrar”, acrescentou.

Acosta recordou que em 2004 houve uma rebelião brutalmente reprimida na unidade, que durou quatro dias e derivou no julgamento de 27 agentes policiais por torturas. Contudo, apenas seis foram condenados, e por delitos menores. A origem deste conflito foi o tratamento abusivo que os agentes aplicavam à mãe de Cristian Ibazeta, um preso de 34 anos cego e que sofria de esclerose múltipla. Ibazeta, que fez inumeráveis denúncias por torturas, foi morto a punhaladas dentro da prisão em maio, quando faltava apenas um mês para sua liberdade condicional.

Uma investigação publicada pelo CELS no livro Direitos Humanos na Argentina Informe 2012, detalha que torturas, golpes, traslados arbitrários, castigos desmedidos ou falta de higiene são moeda corrente em muitas unidades carcerárias do país. Na província de Buenos Aires, o distrito mais populoso e cujas prisões abrigam mais de 50% dos presos da Argentina, também há superlotação, presos dormindo no chão, sem acesso a sanitários e punidos com duchas geladas e golpes, além de manuseio dos familiares que os visitam.

Asprella contou que, em janeiro, Patricio Barros Cisneros, de 26 anos, interno de uma prisão dessa província, foi morto a golpes por agentes penitenciários depois de pedir um local reservado para receber sua mulher, grávida de oito meses. “Se um jovem de 26 anos morre na rua em razão de golpes desferidos por um grupo é um escândalo para a mídia por vários dias, mas, se ocorre dentro de uma prisão, a sociedade ignora e, então, continua acontecendo”, alertou. Envolverde/IPS