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Viver em uma cidade murada

Crianças no telhado da casa da família Shuruf. Foto: P.Klochendler/IPS

 

Ar-Ram, Jerusalém Oriental, 17/10/2012 – Ali Shuruf acende as luzes e ilumina uma colorida sala de estar que contrasta com a vista externa, com tudo cinza. Sua casa dá literalmente para um muro, não qualquer muro, mas uma barreira de concreto de oito metros de altura que separa palestinos de israelenses. “Da sala se vê o muro. Da cozinha, do terraço, sempre o muro que nos encerra pelo leste, oeste e sul”, disse Shuruf, um construtor palestino, apontando para uma gaiola com um papagaio australiano que dá saltos. “Somos como pássaros engaiolados. A liberdade termina aqui”, acrescentou.

Do telhado da casa Shuruf mostra o resplendor das luzes atrás do lado leste do muro. “Esta é a separação entre árabes e judeus” em Jerusalém oriental. Shuruf construiu a casa de três andares com seus irmãos, e cada um ocupa um deles com sua família. O bairro judeu vizinho, Neve Ya’akov, fica dentro dos limites do município de Jerusalém, como Ar-Ram, só que o primeiro está dentro do perímetro do muro e o segundo fora.

Após a ocupação israelense de Jerusalém oriental em 1967, o planejamento urbano incluiu a construção de centros comunitários, comerciais, médicos e esportivos, bem como escolas, praças e sinagogas para a população judia. Pelo fato de bairros como Neve Ya’akov ficarem na parte ocupada da cidade, o planejamento também considerou necessário um muro de proteção.

“Jogávamos futebol juntos. Agora estamos separados”, lamentou Fadhi Hijazi, amigo de um dos filhos de Shuruf. O muro de separação foi construído depois da segunda Intifada (levante palestino de 2002 a 2005) como proteção contra possíveis atacantes suicidas. Dez anos depois, uma barreira de 142 quilômetros de comprimento cerca a maior parte de Jerusalém oriental, e apenas quatro quilômetros de sua extensão total foram construídos sobre a linha divisória fixada antes de 1967.

Soldados israelenses ocupam postos de controle dos dois lados do muro, e nenhum sobre essa linha. A “fronteira” de concreto não separa apenas os bairros judeus de povoados e cidades da Cisjordânia, mas também deixa fora os bairros palestinos de Jerusalém. Muitos de seus moradores, como Shuruf, com cartão de residência azul, ficam fora da cidade. “Visitar meu vizinho de porta me custa uma hora”, contou Shuruf.

O muro não é apenas uma questão de segurança; além de impedir a liberdade de movimento também faz parte da política para manter uma maioria judia em Jerusalém. “O muro é uma coisa racista que fomenta o ódio”, disse Mohammad Turman, cunhado de Shuruf. “O problema não são os israelenses em si, podemos viver em paz. O problema é quem controla a cidade”, acrescentou.

A batalha por Jerusalém é por quem controla o fator demográfico. Na parte oriental vivem cerca de 200 mil israelenses e cerca de 300 mil palestinos. Entretanto, bairros árabes inteiros ficaram excluídos, de fato, da cidade pelo muro de separação. Localizado no caminho rumo à cidade de Ramalah, na Cisjordânia, Ar-Ram, com seus dez mil habitantes, é um desses bairros.

Chegar de carro até onde vive Shuruf desde intramuros é um trajeto cansativo. É preciso atravessar o bairro judeu Pisgat Ze’ev através do posto de controle de Hizme, ou dirigir cerca de dez quilômetros ao longo do muro até a entrada de Kalandia no sentido de Ramalá, e depois dar a volta em “U” e regressar do outro lado do muro.

“Não temos os serviços municipais que nos cabem, saúde, educação”, lamentou Shuruf, explicando que precisou matricular seus filhos em uma “escola local pobre por causa do muro”. Os bairros palestinos sofrem um abandono crônico, e o muro só exacerbou a deprimente realidade socioeconômica.

Dados da Associação para os Direitos Civis em Israel mostram que a pobreza chega a 78% dos residentes palestinos de Jerusalém oriental, dos quais 84% são crianças. Além disso, 40% dos homens e 85% das mulheres não têm trabalho.

Quando Shuruf sofreu um derrame cerebral há dois anos, “a ambulância israelense não quis vir por questões de segurança, e tampouco a Meia Lua Vermelha, porque é área controlada por Israel”, recordou Hijazi. Só pôde contar com sua família, que o levou ao hospital mais próximo.

Na década de 1990, o acordo de paz de Oslo dividiu a Cisjordânia em três zonas: a Área A, sob a Autoridade Nacional Palestina; Área B, com a segurança sob controle de Israel e da autoridade municipal palestina; e Área C, sob total controle israelense. Por estar anexada por Israel, Jerusalém oriental ficou fora da divisão de Oslo. Palestinos encerrados em bairros como Ar-Ram ficaram no limbo.

O muro cerceia mais as relações vitais entre Jerusalém oriental e os centros econômicos palestino-cisjordanianos, como Belém, no sul, e Ramalá, no norte. Jerusalém oriental costumava prestar serviços à Cisjordânia, mas agora está inacessível para os palestinos sem uma autorização concedida por Israel. “Nossa vida estava em Jerusalém, não na parte palestina”, explicou Hijazi.

Se o objetivo do muro foi romper os laços da população palestina com Jerusalém, conseguiu-se exatamente o contrário, empurrá-los de volta para Israel. Os palestinos não querem ficar fazendo filas nos postos de controle. Querem trabalhar, aproveitar os serviços municipais e comprar do lado israelense da cidade.

Shuruf aluga uma casa do outro lado do muro apenas para ter sua carteira de identidade de Jerusalém e receber atenção médica, agora um privilégio, mas que lhe cabia como morador de Jerusalém antes da imposição do muro. “Para nós o que está em jogo não é sermos absorvidos por Israel, mas sobreviver, suportar a ocupação israelense”, resumiu Shuruf. Envolverde/IPS