Um grande amigo pediu minha opinião sobre os acontecimentos recentes na USP. Agora longe de São Paulo, quis saber como alguém da USP, e além disso da FEA, vê toda essa situação. Realmente de longe fica difícil entender. Temos de passar por uma cortina de fumaça criada pelos mais diversos meios de comunicação, é bem verdade.
No entanto, não posso me colocar em uma posição de esclarecimento dos fatos, por si só. Já existem relatos suficientes para isso, de alunos que estavam nas assembléias ou no momento da invasão. Já existem também diversas análises interessantes sobre o que aconteceu. Estou somente na posição de falar como um aluno da USP, que ao mesmo tempo é da FEA, ou seja, um monstro formado por ambiguidades.
Sou aluno da FEA. Trabalho durante o dia, 10, 12, até 14 horas por dia. Estudo à noite. Ou melhor, vou às aulas quando posso. Como trabalhador, pago meus impostos. Como somente vou à USP para assistir às aulas e nunca depredei o chamado patrimônio público, sou um bom beneficiário dos cidadãos que com seus impostos pagam por minha educação. Não sou “vagabundo”, não fumo maconha no campus.
Mas você não me quer como aluno da USP. Fazendo o que eu faço atualmente, estou simplesmente colocando seu precioso dinheiro no bolso. Com o conhecimento que adquiro nas salas de aula, faço uso somente em meu benefício, pois consigo um emprego melhor, um bônus melhor no final do ano, mais lucro para meu empregador. Mas ainda assim muitos acham que me querem como aluno da USP.
Como alunos da USP, aqueles que participaram e participam das assembleias, aqueles que invadiram e invadem reitorias, estão, permitam-me, fazendo o que se espera de um aluno da USP. A Universidade é o lugar onde se questiona, onde se reflete sobre nossos problemas, onde se ensina e onde se aprende. A Universidade é o lugar para indignar-se, para pensar em um mundo melhor. Utópico? É este o papel da Universidade: proteger o pensamento crítico que vai mudar o mundo.
O que os vagabundos fizeram foi justamente trazer a atenção para diversos problemas que enfrentamos atualmente. Com a escolha unilateral do atual reitor, temos o fantasma da ingerência. Com as ações friamente calculadas do atual reitor, que desqualifica os protestos dos estudantes manipulando (ou seria compactuando?) a mídia, trazendo a atenção para a camiseta de marca, para a depredação (que, sabemos todos, não existiu), temos o fantasma da perseguição, da tentativa de tornar-nos todos dormentes. Com os gritos de “vagabundo” e “maconheiro”, mergulhamos no abismo do debate raso sobre as drogas em nossa sociedade. Com os gritos de “mimado” e “playboy“, nos perdemos na escuridão que é o debate da segurança pública.
Quem você quer como aluno da USP são justamente eles, e não eu. São aqueles que gozando de sua juventude, são revolucionários, sabem que seu papel é pensar em maneiras de mudarmos para melhor, e não aqueles que veem a universidade como um instrumento de formação de técnicos, que mais tarde, como arquitetos, não se perguntarão quantas casas faltam em nossos países, como bem disse Allende. São aqueles que defendem uma universidade livre para pensar, mas também que defendem uma sociedade livre para pensar, que da mesma maneira que não querem uma polícia que persegue estudantes, não querem uma polícia que persegue membros de uma comunidade no morro.
Mas, e a invasão? Sou a favor. Apesar de ter ocorrido daquela maneira, após decisão de assembleia contra a invasão (pelo menos o que li foi que foi aprovada mais tarde, depois de uma redução drástica de quorum), aqueles alunos tiveram a coragem de se exporem e expor a situação crítica na qual nossa universidade (e a sociedade) se encontra. A coragem daqueles alunos (que não são ingênuos como muitos disseram e sabiam que seriam presos e humilhados) permitiu que meu grande amigo, admirador de Allende e Mário Quintana, pudesse discutir a universidade, a polícia e a sociedade com colegas, familiares, estudantes e trabalhadores, que de outra maneira estariam tão distantes da USP.
Não desejem estudantes dormentes. Desejem estudantes sonhadores.
Em tempo: os alunos da FEA, e da USP, querem segurança, o que não quer dizer que querem a Polícia Militar no campus. Os alunos possuem propostas claras e objetivas para a solução da segurança: mais iluminação (você sabia que é a política de segurança pública mais eficiente? bairros com lâmpadas amarelas são mais seguros que bairros com iluminação branca); abertura da universidade para circulação de pessoas, ou seja, maior integração à cidade (o que significa que não nos vemos como um oásis no meio da cidade); policiamento por uma guarda universitária equipada e composta por mais mulheres (queremos, sim, um policiamento independente e que possa prezar pela segurança das pessoas sem ser um instrumento de coerção, coação, repressão). Todas são medidas comprovadamente eficazes.
Cabe ainda apontar, que o assassinato de nosso colega da FEA não foi a causa da PM no campus. Como? Ora, a presença da Polícia Militar já estava ocorrendo de forma mais intensiva no campus antes do ocorrido. Não se pode dizer que o número de incidentes diminuiu com a PM (a USP possui estatísticas de ocorrências: veja aqui ).
A PM no campus é, sim, consequência deste ocorrido, pois foi usada para criar um embate entre bons e maus: maus são os estudantes, que querem fazer o que bem entendem no campus sem policiamento; bons são o reitor, o governador, que passaram por autoridades preocupadas com a segurança dos estudantes, “a favor da PM”, dividindo o movimento estudantil e colocando a população contra os estudantes.
* Cleber Pelizzon é economista, formado na Faculdade de Economia Administração e Contabilidade (FEA) da USP.
** Publicado originalmente no site Correio da Cidadania.