Reduzir o tamanho do sistema financeiro tem sido uma prescrição frequente na boca de economistas não ortodoxos, quando o assunto é reverter a crise mundial e retomar o controle da economia nas mãos sociedade. Ou , como resumem os indignados norte-americanos indo diretamente ao ponto simbólico da questão: “Ocupar Wall Street”.
Por sua pertinência e poder de síntese, a bandeira que nasceu com um acampamento singelo em Nova York há menos de um mês ganhou rapidamente o foco mundial. Pode se tornar uma espécie de resposta-síntese da sociedade aos dogmas, mantras e salmos dos mercados que jogaram o mundo na maior crise do capitalismo desde 1929 e insistem em aprisionar a humanidade dentro dela. “Ocupar Wall Street” tem fôlego histórico para ser uma espécie de “pão, paz e trabalho” do Século 21.
É preciso ter em conta, porém, o tamanho da “ocupação necessária”. A crueza no discernimento do jogo é crucial para um movimento cujo principal legado será arguir, afrontar e transformar plataformas e programas que se propõem a superar a crise atual. Para que a mobilização persiga de fato os fundamentos de sua bandeira, será necessário em algum momento decodificá-la do simbolismo contundente em objetivos concretos. Não necessariamente isso ocorrerá nas assembleias da Praça da Liberdade. Mas Atenas, Madri, Lisboa, Londres, Tel Aviv, Santiago e agora Wall Street já demonstraram que só as ruas têm o calibre e a densidade necessários para derrubar ou pautar governos, refundar ou enterrar partidos, fortalecer ou descartar lideranças. A esperança do mundo é de que seja assim também nas eleições presidenciais de 2012 nos Estados Unidos, com as ruas opondo contrapesos claros ao extremismo conservador e à hesitação democrata.
Se assim o fizer, “Ocupar Wall Street” terá cumprido a missão de transformar a disputa sucessória de Obama no palco mundial de um embate pedagógico – que a mídia ofusca – entre os interesses devastadores dos chamados “livres mercados” e as forças que buscam uma alternativa solidária, democrática, ambientalmente viável ao longo crepúsculo neoliberal.
A resistência a isso, como tem experimentado na carne os indignados de Atenas, não pode ser subestimada.
Hoje, 20 maiores bancos do mundo entrelaçam o mercado global formando um poder financeiro superior ao de dezenas de países e governos juntos.
Dez maiores empresas gestoras de fundos de investimentos controlam US$ 17,4 trilhões – uma riqueza financeira 20% superior ao PIB dos Estados Unidos. Oito vezes o tamanho do Brasil.
A desproporção pode ser resumida num dado: o orçamento da FAO, o principal organismo da ONU para cuidar da segurança alimentar e da agricultura, é de US$ 1 bi. Parece muito, mas equivale a destinar um dólar per capita/ano aos quase um bilhão de famintos existentes no mundo. É nada. Alguns países ameaçam reduzir ainda mais esse orçamento composto de contribuições internacionais. Na zona do euro, a prioridade de muitos governantes, inclusive os social-democratas, tem sido cortar despesas fiscais para remunerar com juros mais altos os compradores de sua dívida. Uma tentativa pírrica de evitar que os fundos especulativos batam em retirada do mercado mas que apenas lubrifica a beira do abismo: arrocho fiscal, como lembrou a presidenta Dilma, gera mais recessão, com quedas proporcionais de receitas públicas que impõem novos degraus de endividamento.
Sem reduzir o tamanho do setor financeiro na economia – e, portanto, seu poder discricionário sobre a política fiscal, o Estados e os partidos –, fica muito difícil romper essa lógica autopropelida de submissão e sangramento. Um exemplo resume todos os demais. O fundo Pimco comanda sozinho um volume de recursos próximo ao do PIB brasileiro (US$ 1,3 tri). A diferença é que estamos falando de um canhão de liquidez giratório, desvinculado de qualquer outro compromisso exceto a rentabilidade máxima. Com a mira nesse alvo móvel, o Pimco deixou de financiar a Espanha em 2010.
Abruptamente.
Ao fazê-lo ergueu a bandeira da suspeição sobre a solvência do país, anabolizando a fuga da manada que costuma se pautar pelo trote dos grandes mamíferos do mercado. Este ano, o Pimco, que tem como “CEO” (chief executive officer) um desses heróis do capitalismo, Mohamed A. El-Erian, uma espécie de Steve Jobs da especulação com irrepreensível folha corrida de metas de rentabilidade alcançadas, deixou de financiar bancos do euro no mercado de curto prazo. A decisão unilateral e novamente abrupta, como manda a estratégia do “esfole a presa e fuja primeiro”, agravou a instabilidade do combalido sistema bancário do euro.
Movimentos desses gigantescos répteis especulativos funcionam como um grito de “fogo” para os aplicadores, gerando quedas drásticas do valor dos bancos em bolsa e o pagamento de juros crescentes pelos governos.
O epicentro da crise mundial transita assim para a explosiva fronteira bancária, onde abutres do tipo Pimco raspam os ossos antes do voo mortal de despedida. Ensaios registrados nas últimas semanas – a quebra do banco franco-belga Dexia, por exemplo – sugerem que as exéquias de um explosivo “Lehman Brothers do euro” podem estar próximas.
A lenta capacidade de iniciativa das lideranças políticas do euro – colonizadas pelo poder financeiro que deveriam disciplinar – e a resistência a resgates em massa sinalizam dias piores para os banca europeus. Acenos do tipo “agora vai”, esboçados por Sarkozy e Merkel ao final de suas incontáveis cúpulas “decisivas”, têm cada vez menor efeito anestésico nos mercados.
É contra esse poder desproporcional e desordenado, em retirada destrutiva para lugar nenhum, que o “Ocupar Wall Street” se insurge e pode cumprir um papel esclarecedor na mobilização de forças e projetos em sentido contrário.
Um desafio crucial será escapar do ardil moralista que condena protagonistas mas absolve o enredo.
Bancos e juros não são uma invenção do diabo, mas a essência do capitalismo. Seu papel no sistema é estratégico na mobilização e gestão dos capitais dispersos que, na forma de capital a juro, propiciam um salto de escala e qualidade ao gerar crédito e recursos para a demanda e o investimento ampliado em meios de produção. O crédito nesse processo funciona como uma antecipação do futuro para a demanda, contornando a crise de superprodução de mercadorias – mas não a de capitais, como se vê – implícita num sistema baseado na mais-valia.
Portanto, estamos diante de um poder estruturado, enraizado e obstinado em sua lógica de extrema funcionalidade e contundência, unicamente controlável por meio da estatização pura e simples ou da submissão impositiva a regras de repressão estatal de extremo rigor e abrangência. Em resumo, o oposto da desregulação disseminada no ciclo neoliberal que degenerou as atribuições operacionais das finanças, calcificando a supremacia de um poder paralelo e supranacional.
A autonomia conquistada pelo capital a juros, com o desmonte regulatório do sistema de coerção das finanças nascido na equação da crise de 1929, consolidou a expansão ilimitada da liquidez, a metástase dos fundos especulativos, a hipertrofia do crédito e do endividamento (de consumidores também, mas sobretudo de Estados que renunciaram à taxação da riqueza para torná-la acionista da dívida pública a juros), os derivativos, os hedges, o carry trade, as bolsas e uma miríade de operações e circuitos do dinheiro arisco.
A entropia dessa lógica vem destruindo volumes descomunais de capitais fictícios desde 2007 e mobilizando sacrifícios sociais gigantescos para salvá-los com injeções de recursos subtraídos das urgências da sociedade. As bolsas mundiais perderam a bagatela de US$ 22 trilhões em 2008. Os maiores bancos franceses já perderam este ano cerca de 45% do valor de mercado de suas ações. Ainda assim é insuficiente para reverter um poder que não deriva apenas de sua ubiquidade econômica, mas também do enraizamento ideológico no aparelho de Estado, na mídia – vide o jogral contra a redução dos juros no Brasil, no mundo acadêmico e no ambiente dos negócios em geral. A obsessão mórbida pela liquidez (a juros) – para emprestar a frase de Keynes – tornou-se o valor máximo a perseguir, a contrapelo dos valores da democracia e das prioridades do desenvolvimemto.
“Ocupar Wall Street” tem esse sentido de uma rebelião reordenadora contra a lógica que subtrai recursos da saúde e da educação pública no Brasil, frauda o escrutínio das urnas na Espanha, e corrói o emprego nos Estados Unidos e em dezenas de outras nações, regurgitando juros sobre juros numa autofagia inútil e sem controle. Mesmo em inglês, o grito que partiu da Praça da Liberdade, em Nova York, encontrou empatia imediata em todos os idiomas e agruras do mundo porque fala ao sentimento intuitivo de todos os povos: é preciso enfrentar o cerne do capitalismo em nosso tempo.
* Publicado originalmente no site Agência Carta Maior.