Buenos Aires, Argentina, 24/6/2011 – Embora a nova legislação sobre imigração da Argentina seja considerada das mais progressistas da América Latina, a persistência de acentuados sinais xenófobos e discriminatórios em várias camadas da sociedade mostra que o avanço ainda é mais teórico do que prático. A rejeição ao estrangeiro, sem papéis legais, atinge milhares de imigrantes em escritórios públicos, nas ruas, nos diferentes empregos, nas escolas ou nos hospitais da Argentina, apesar de a lei lhes reconhecer direito de acesso a todos os serviços livremente.
“Passo sempre pelo hospital e está cheio de peruanos e paraguaios que tiram lugar dos argentinos”, diz à IPS uma mulher que garante reconhecer, apenas passando pela porta, “o sotaque” dos pacientes atendidos no centro médico estatal de San Isidro, uma localidade da região metropolitana de Buenos Aires. A socióloga Corina Rodríguez Enriquez, do Centro Interdisciplinar para o Estudo de Políticas Públicas (Ciepp), seleciona outra frase de igual teor, anotada em seu estudo, dita por taxistas: “Estes negros de merda, porque não voltam para o seu país?”.
Corina é autora de um trabalho, ainda inédito, sobre a imigração de mulheres paraguaias para a Argentina, uma dinâmica que ela insere nas “cadeias globais de cuidado”, para trabalhar cuidando da casa, dos filhos e dos idosos. A pesquisa integra um projeto da ONU Mulheres que também analisa “as cadeias de cuidado” entre imigrantes equatorianas e bolivianas na Espanha, peruanas no Chile e nicaraguenses na Costa Rica.
Na América Latina, a emigração feminina passou de 44,7% do total em 1960 para 50,5% em 2000. Esta feminização do fenômeno se acentuou a partir dos anos 1990 devido às crises econômicas que atingem seus países de origem. Corina afirmou que a transnacionalização dos cuidados cai em um regime injusto, no qual são vulnerados direitos, tanto dos que emigram quanto dos que devem enfrentar as tarefas familiares deixadas por quem parte.
As imigrantes, que deixam seus países em busca de melhores oportunidades de emprego, e que têm, em geral, pouca qualificação, costumam deixar para trás filhos aos cuidados de familiares para trabalhar em casas das classes média e alta. O principal ramo onde as mulheres se empregam é o serviço doméstico. Na Argentina, 58,1% das paraguaias trabalham nesse setor e, apesar de cuidar de uma instituição apreciada neste país como é a família, costumam ser discriminadas. Essa marginalização também atinge as mulheres em outros estratos sociais.
No artigo, a socióloga diz que a nova legislação migratória “é progressista” e “ampliou direitos”, mas, alerta, ainda persistem “travas culturais” no acesso à saúde ou educação, que respondem a uma “inércia” da burocracia. “A xenofobia e a discriminação continuam sendo uma realidade palpável na Argentina”, afirmou a autora. “A igualdade de direitos com o imigrante nem sempre é bem-vinda pelos argentinos”, acrescentou.
Para sua pesquisa, Corina fez diversas entrevistas com imigrantes empregadas na limpeza e no cuidado de crianças e idosos. Também ouviu patroas e funcionários e associações de imigrantes e de defensores dos direitos humanos. Dos depoimentos constam expressões discriminatórias de algumas empregadoras, um grupo que, por ter contratado estrangeira para trabalhar em sua casa, supõe-se que teria menos preconceitos.
“Há paraguaias que são muito sujas”, disse uma. “Tive duas experiências ruins com paraguaias porque são meio mentirosas”, afirmou outra. “Estes estereótipos de características vinculadas a nacionalidades também aparecem nos meios de comunicação, no discurso de funcionários e de vizinhos”, disse Corina à IPS. “São sinais persistentes da sociedade argentina”, acrescentou.
Estes males convivem com uma série de reformas em torno das migrações que foram pioneiras na região. Por um lado, a lei de 2004, que revogou uma norma da última ditadura (1976-1983) e, por outro, um programa que facilitou a regulamentação de estrangeiros sem os documentos necessários. Em conversa com a IPS, Luciana Litterio, da Direção Nacional de Migrações, assegurou que a Argentina foi o primeiro país da América Latina a avançar em uma lei reconhecendo a imigração como um direito humano.
“Depois o Uruguai promoveu uma lei semelhante, que teve a da Argentina como modelo, e agora, no Equador, se trabalha em uma lei que também coloca eixo nos direitos da pessoa”, acrescentou Luciana. A lei argentina, entre outras disposições, ordena que seja garantido o acesso de imigrantes à saúde e à educação públicas e elimina a obrigação de os funcionários públicos denunciarem os estrangeiros ilegais.
Já o Programa Pátria Grande, lançado em 2006, permitiu a mais de 400 mil imigrantes acesso a residência temporária apenas apresentando seu documento nacional e não tendo antecedentes criminais. Isto é, sem contrato de trabalho. Entretanto, Pablo Asad, representante da organização humanitária Centro de Estudos Legais e Sociais, que trabalha na cobertura legal com imigrantes, considera que ainda há muitas falhas na concretização dos direitos.
Asad destacou que há imigrantes que não conseguem matricular seus filhos em escolas públicas ou que são rejeitados em hospitais por não terem documento de identidade argentino e, ainda, que não existe um órgão onde denunciar estas falhas. Também ressaltou que a política argentina privilegia imigrantes de países próximos, facilitando os trâmites, mas age de forma mais rígidas com imigrantes de fora da América do Sul, como dominicanos ou senegaleses. Envolverde/IPS