Preciso confessar que não levo o xícara cheia muito a sério, não porque ele seja uma possível fonte de conhecimento, mas porque ele acredite que não precisa de mais conhecimento. O xícara cheia é aquele que não pode aceitar um pouco mais de chá, pois corre o risco de transbordar conteúdo no pires, na bandeja, na mesa, no chão – e seria um desperdício jogar fora algo que ele já tem em profusão!
O xícara cheia deve ficar imóvel, não importa que o seu chá se esfrie e se estrague, pois o chá do xícara cheia não precisa ser renovado. A xícara se encheu em um determinado momento da vida, e o xícara cheia quer que a realidade daquele momento perdure, sem mutações, na linha do tempo. Espaço e tempo se condicionam ao xícara cheia, e não o contrário.
O xícara cheia tem muitas certezas, está seguro de muitas verdades da vida, e não abre espaço para novos ensinamentos e percepções. Não é que novos ensinamentos não cheguem até ele, é que ele se recusa a abrir espaço para o novo, pois ele já sabe tudo o que precisa saber.
O xícara cheia parece não conhecer a noção de saber-fluxo de Pierre Lévy (1). Ou se leu, não entendeu nada:“O que é preciso aprender não pode mais ser planejado nem precisamente definido com antecedência. (….) No lugar de uma representação em escalas lineares e paralelas, em pirâmides estruturadas em níveis (…) devemos preferir a imagem de espaços de conhecimento emergentes, abertos, contínuos, em fluxo, não lineares, se reorganizando de acordo com os objetivos ou os contextos, nos quais cada um ocupa uma posição singular e evolutiva” (1999:158).
Ele ignora a concepção de Rifkin (2), para quem o acesso é mais importante do que a propriedade nos dias atuais. Ignora o princípio formulado por Daniel Bell (3), que dá centralidade ao conhecimento como fonte de inovação. O xícara cheia ainda não percebeu a revolução que Castells (4) e Boltanski & Chiapello (5) enxergaram, e não compartilha da proposta de Douglas & Isherwood (6), na qual o ser humano individual não tem utilidade conceitual para retratar a sociedade já que as “teorias individualistas do conhecimento e do comportamento tiveram seus dias” (2009:108).
Ao optar por ser xícara cheia, o sujeito faz a opção por um isolamento sabotador e perigoso, que amputa possibilidades de interação e crescimento, e despreza o legado filosófico, que considera o conhecimento uma jornada de construção coletiva.
Notas de rodapé:
1. Cibercultura, Pierre Lévy.
2. A Era do Acesso, Jeremy Rikfin.
3. O Advento da Sociedade Pós-Industrial – Uma Tentativa de Previsão Social, Daniel Bell.
4. A Sociedade em Rede – A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura, Manuel Castells.
5. O Novo Espírito do Capitalismo, Boltanski & Chiapello.
6. O Mundo dos Bens: Para uma Antropologia do Consumo, Douglas & Isherwood.
* Flávia Galindo é doutoranda em Ciências Sociais, professora de Marketing na Univesidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), pesquisa o consumo no grupo Estudos do Consumo, e integra o Conselho Editorial da revista Comunicação 360º. Pode ser encontrada no twitter @flaviagalindo.
** Publicado originalmente no site Nós da Comunicação.