Zara: o dia em que uma multinacional pediu desculpas

Um mês após a divulgação do flagrante de mão de obra escrava na fabricação de peças de roupa da marca Zara, executivos da espanhola Inditex, dona da Zara, foram ao Congresso pedir desculpas públicas pelo ocorrido. “Gostaríamos de pedir desculpas por não termos tido conhecimento desta situação antecipadamente, de modo a evitá-la”, disse Jesus Echevarria, diretor global de comunicação da Inditex, em reunião da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM) realizada na semana passada.

“Não há dano maior que possa afetar uma companhia de caráter internacional, como a nossa, do que esse que ocorreu”, afirmou. E ele está coberto de razão. Desde que foram identificados graves problemas de superexploração na cadeia de produção da Nike, por exemplo, a companhia atua para se desvincular do impacto negativo gerado. Jesus veio acompanhado do diretor-presidente da Zara Brasil, Enrique Huerta González, que já havia sido convidado pela Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) a comparecer à reunião com propósitos semelhantes, mas faltou. Maurício Hashizume, aqui da Repórter Brasil, cobriu a reunião em Brasília.

Trago partes de seu relato, até porque parte dos colegas da imprensa compraram promessas da empresa como fatos consumados. O que não é legal.

Aos parlamentares, no dia 15, Jesus reforçou o entendimento de que o flagrante fere valores e princípios da Inditex e se deu por conta de uma “subcontratação não autorizada” do fornecedor, que descumpriu o seu código de conduta obrigatório e previsto em contrato. Declarou ainda que a empresa se coloca como “vítima de uma situação que não foi por ela criada” e que suspendeu a relação com o agente intermediário envolvido (AHA Ind. e Com. de Roupas Ltda.) até a correção das irregularidades apontadas. Enumerou ações sociais como as que atendem duas mil crianças em Ilhéus (BA) e Natal (RN), insistiu ainda que a companhia e a indústria brasileira, em geral, seguem regularmente padrões estabelecidos de qualidade, e ainda alegou ter realizado um diagnóstico da cadeia produtiva no país com “mais de 200 verificações”.

O principal objetivo da presença dos representantes da empresa foi o anúncio de novas medidas que estão sendo tomadas em parceria com outras instituições. Contudo, duas dessas parcerias anunciadas – justamente as que envolvem representantes de trabalhadores e de imigrantes – são apenas promessas de acordos que ainda não foram firmados com as entidades contatadas.

A maioria das providências apresentadas está relacionada a entidades ligadas ao empresariado: como uma linha de telefone para denúncias de abusos de trabalho envolvendo a Zara (0800-7709242), além de um programa de capacitação para fornecedores e um manual de boas práticas, toda elas com a colaboração do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social; e um sistema específico de pré-avaliação de fornecedores com base em parâmetros da Associação Brasileira de Varejo Têxtil (Abvtex), que reúne as maiores do segmento.

O monitoramento da cadeia por parte da Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias do Setor Têxtil, Vestuário, Couro e Calçados (Conaccovest), anunciado com pompa, ainda não está fechado. Maria Susicléia Assis, do Sindicato das Costureiras de São Paulo e Osasco, que faz parte do Connacovest, confirmou que houve apenas um encontro inicial sobre o tema e que as bases da atuação prática da entidade – que é filiada à Federação Internacional de Trabalhadores do Setor Têxtil, de Vestuário e de Couro, com a qual a Inditex já tinha protocolo assinado – ainda não foi negociada e, muito menos, concluída.

Também o propalado acordo da Inditex com a Associação Nacional de Estrangeiros e Imigrantes no Brasil (Aneib) para “ajudar na tarefa de regularizar trabalhadores imigrantes bolivianos e de qualquer outra comunidade de imigrantes para identificar as eventuais situações precárias de trabalho sobre as quais não se tem conhecimento” não passa de uma “promessa”, conforme definição do próprio presidente da Aneib, Grover Calderón. “O que existe até o momento é apenas uma intenção”, acrescentou o representante da entidade, que clama por projetos que possam fortalecer os direitos de estrangeiros que vivem e trabalham em situação de vulnerabilidade.

Em conversa exclusiva com a Repórter Brasil, o diretor Jesus não apresentou algumas informações básicas e cruciais referentes à aferição do nível real de confiança que pode ser atribuído ao acompanhamento das cerca de cinco mil confecções que empregam aproximadamente sete mil trabalhadores.

A reportagem questionou, por exemplo, se as intermediárias AHA e Rhodes Confecções Ltda. – envolvida em outra fiscalização que encontrou pessoas produzindo calças da Zara em condições degradantes em Americana (SP) – foram alguma vez avaliadas por auditorias patrocinadas pela Inditex. Na sequência, indagou também quais teriam sido os vereditos e os possíveis planos de ações recomendados, caso essas análises tenham sido realizadas. As respostas para ambas perguntas não foram dadas pelo executivo global da Inditex, que se justificou afirmando que seria preciso checar os objetos das interrogações em meio ao conjunto de dados sobre as ações promovidas nos últimos anos, que foi repassado em formato de dossiê para a Comissão de Direitos Humanos – e também prometido à Repórter Brasil.

A posição sustentada pela empresa não encontrou respaldo no pronunciamento do auditor Luís Alexandre de Faria, da Superintendência Regional de Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE-SP), que coordena, juntamente com a auditora fiscal Giuliana Cassiano, o grupo de combate ao trabalho escravo urbano: “O modelo atual de monitoramento da Zara permite esse tipo de ocorrência (de trabalho análogo à escravidão em oficinas ilegais de costura) e precisa ser mudado”, afirmou. “A partir do flagrante em Americana (SP), ocorrido em maio (de 2011), prosseguimos com investigações e fiscalizações que acabaram comprovando que aquela situação não era isolada”.

O quadro semelhante encontrado em duas oficinas nas quais peças da Zara estavam sendo produzidas foi descrito com minúcias por Luís: desde a extrema precariedade, os riscos iminentes de saúde e segurança, até a degradação de espaços superlotados utilizados simultaneamente como espaço de moradia e local de trabalho por famílias inteiras com crianças. Das jornadas exaustivas à discriminação étnica, dos pagamentos ínfimos por produção às anotações em cadernos, que remetem à servidão por dívida e ao tráfico de pessoas, até os relatos cabais de impedimento da liberdade de ir e vir.

Mereceu particular destaque por parte do auditor a situação da AHA – que sequer apareceu entre os convidados da reunião na Câmara Federal, mas foi chamada e não compareceu à Alesp. Em termos econômicos, acrescentou, “a AHA só existe por causa da Zara”, uma vez que atuava apenas como “entreposto logístico” para o funcionamento do negócio da marca, que detém, segundo evidências colhidas pela fiscalização, toda a direção produtiva do processo.

Foi repetida por ele a constatação de que 46 mil peças de roupa foram “produzidas” para a grife espanhola pela AHA, entre abril e maio deste ano, sem que a “fornecedora” tivesse uma única costureira de linha de produção em seu quadro funcional. Quando chegaram à planta da AHA, em julho, apenas uma solitária “piloteira” confeccionava peças-pilotos de roupas da Zara. Qualquer averiguação mínima, completou Luís, concluiria por óbvio que a produção em escala não estava diretamente a cargo da contratada.

Na conversa com a Repórter Brasil, o diretor da Inditex descartou as possibilidades de rever o sistema de produção de peças de roupas no Brasil baseado em subcontratações – que, apesar de somar quase cinco milhões de peças em 2010, consiste em menos de 1% do total produzido no mundo – ou de instalar fábricas próprias no país, como as que existem no município espanhol de Arteixo, onde fica a sede do grupo. O negócio da companhia, complementou, tem como base a contratação de “provedores externos”. “Não mudaremos isso. É a filosofia retailer (centrada na venda direta ao consumidor)“.

Por fim, para garantir produtos com qualidade técnica e socioambiental aos seus clientes, uma empresa tem que saber o que acontece em sua cadeia produtiva. A justificativa do “eu não sabia o que os outros faziam sob as minhas ordens” pode colar na política, mas em se tratando de economia, a história é diferente. Quando terceiriza a atividade para a qual foi constituída, como uma confecção que manda outros fazerem as suas roupas, a responsabilidade trabalhista pela cadeia de fornecedores continua a ser dela. Quanto mais terceirizados, maior a necessidade de instrumentos efetivos de controle. Consequentemente, em caso de descontrole, maior o tombo.

Nenhum fabricante da Zara no Brasil foi reavaliado em 2010 pelo sistema de auditorias de monitoramento mantido pela transnacional Inditex, que controla a marca de roupas e acessórios. Entre as 1.087 auditorias promovidas no ano passado, apenas nove checagens iniciais (e não de acompanhamento) foram realizadas no Brasil.

* Publicado originalmente no Blog do Sakamoto.