“A Educação Florestal busca uma mudança cultural!”

Entrevista com Flavio Quental, Engenheiro Agrônomo com mestrado em Ecologia e Manejo dos Recursos Naturais.

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Flavio Quental no seminário de Educação Ambiental de Juruena-MT.

Flávio Quental é de São Paulo, os pais são de Pernambuco, graduou-se na Universidade de São Paulo (USP) e fez mestrado no Acre, onde mora há doze anos. Trabalhou como pesquisador associado na Universidade Federal do Acre, UFAC e há cerca de dois anos fez o caminho que é o inverso da maioria das pessoas: deixou a cidade para morar com a esposa e os dois filhos em um sítio na zona rural de Rio Branco. Quando adquiriu a área de 1 hectare ela estava totalmente desmatada  mas com o plantio de sementes consorciadas uma nova floresta já está brotando no lugar. “É um ideal de vida aplicar na prática aquilo que eu ensino e sentir na pele as dificuldades de um produtor rural”, declara.

A maior parte de sua renda vem das consultorias mas ele também produz e comercializa produtos da sua propriedade onde não se utiliza fogo ou adubos químicos. Como consultor ele realiza cursos e palestras onde temas importantes como o do Educador Agroflorestal e Sistemas Agroflorestais Biodiversos estão entre os mais procurados.

Flávio esteve em Mato Grosso no mês de julho como um dos palestrantes do I Seminário de Educação Ambiental de Juruena, promovido pelo projeto Poço de Carbono Juruena, executado pela Associação de Desenvolvimento Rural de Juruena, com patrocínio do Programa Petrobras Ambiental. A Prefeitura Municipal, através da Secretaria Municipal de Educação e a Escola Estadual Dom Aquino Correa também apoiaram a iniciativa.

Entre uma palestra e outra durante o seminário, o engenheiro agrônomo concedeu a seguinte entrevista:

O que é o Educador Agroflorestal? No que ele se diferencia dos educadores tradicionais?

A Educação Agroflorestal desenvolve métodos e materiais didáticos pra trabalhar com estudantes, com agricultores, com jovens, com adultos, com ensino médio, técnico, superior, pós-graduação. São diversas modalidades para diversos públicos. Mas trabalhar esses princípios da floresta aplicando isso no sistema de produção, que é a agricultura. Então não é só a conservação ambiental. É aliar a conservação ambiental com a produção. Estamos falando de produção, de agricultura, de viabilidade econômica porque lidamos com agricultores que vivem disso profissionalmente. Então é entender o desenvolvimento da floresta e aplicar no sistema de produção. E a grande questão é essa: como fazer isso sem que seja meramente expositivo ou na visão antiga de o professor ensinando ao aluno que não sabe? Porque quem conhece melhor do que ninguém como a floresta funciona é o agricultor, o seringueiro, o ribeirinho, o indígena. A metodologia parte do conhecimento que as pessoas já possuem, o que é fundamental no processo de construção de uma agrofloresta.

Como pensar esses conceitos em locais com uma diversidade cultural muito grande. No noroeste de Mato Grosso, por exemplo, há agricultores do sul, do sudeste, do norte… E muita gente fala que chegou a Mato Grosso e desmatou porque era o estímulo do governo e era o que ele sabia fazer. Como que a Educação Agroflorestal lida com isso?

A Educação Florestal busca uma mudança cultural. A cultura não é estática, ela se transforma ao longo do tempo. Queremos mudar a cultura de usar fogo! E a diversidade de pessoas, assim como a biodiversidade, é uma aliada. Então há pessoas com diversas histórias e experiências de regiões diferentes, técnicos com produtores, jovens com adultos e isso é muito bom. Veja o exemplo de um agricultor que veio do sul e não tem a cultura da floresta. Ele sabe porque sentiu na pele as conseqüências da agricultura convencional. Ele sabe como poucos o que causa a degradação do solo, os efeitos do agrotóxico. Pense no exemplo de agricultores do sul e ribeirinhos da Amazônia fazendo uma mesma oficina. Existe uma grande possibilidade de uma troca riquíssima de experiências. Os agricultores do sul falando sobre as conseqüências da agricultura convencional e os ribeirinhos trazendo os conhecimentos da floresta. E são as duas coisas que nós queremos aliar pra construir algo novo. A construção conjunta baseada na diversidade de saberes é a base do trabalho da Educação Agroflorestal.

Como que as práticas do Educador Agroflorestal se diferenciam de outras práticas participativas?

A educação agroflorestal traz elementos de uma ampla gama de metodologias que já existiam e outras que foram criadas baseadas em princípios. A idéia é que não seja uma metodologia fixa com atividades pré-determinadas. Na verdade é baseada em valores e oferece uma gama de possibilidades de exemplos que podem ser alteradas. Traz elementos do DRP (Diagnóstico Rápido Participativo) e também, por exemplo, do sondeio, que é uma forma de diagnóstico desenvolvida na Guatemala. Traz também a experiência do flanelógrafo, que era bastante usado no tempo dos meus avós. Meus pais aprenderam a ler e escrever usando flanelógrafos.

O que é um flanelógrafo?

É um pano de feltro onde você cola figuras. Na alfabetização você vai colando as letras, formando as sílabas e você consegue tirar, mudar, montar palavras. Antigamente alfabetizava as pessoas com essa ferramenta. Nós a adaptamos para falar sobre a dinâmica da paisagem. Ao invés de eu falar no microfone, a gente faz uma dinâmica onde os agricultores vão falando e colando os elementos na paisagem e sendo estimulados por perguntas. Monta-se a floresta e se discute o ciclo da água, ciclo de nutrientes. A gente parte de uma leitura de uma realidade que eles vivem com participação ativa. É uma imersão na realidade que desperta para problemas. Depois a gente discute o que a gente pode fazer para melhorar a situação, para resolver os problemas. E isso não é empurrado goela abaixo. Os agricultores imersos em suas próprias realidades é que vão sentir a necessidade e a demanda por esse tipo de trabalho e não a demanda induzida por um técnico.

Dá para perceber que tem muito de Paulo Freire nessa proposta. Você também faz uma provocação aos professores por uma nova abordagem na relação professor-aluno, de que os docentes são os gerentes do processo de aprendizagem e não os ditadores do conhecimento. Como isso é recebido por eles?

Eu costumo dizer que antigamente o professor era aquele em que a própria sociedade o reconhecia como um mestre, como um educador. As pessoas se dedicavam a ser professor por dom, porque amavam  isso. Hoje ainda existe isso, mas se modificou um pouco. Hoje ser professor virou mais uma opção de emprego do que um dom. Muita gente que não gosta de sala de aula está fazendo isso. Tem que partir da vontade da pessoa em olhar para sua própria prática pedagógica e estar aberta a mudanças. Então um processo seletivo para cursos de formação de educadores é fundamental. E o primeiro ponto é querer participar. A “querência” da pessoa e a abertura dessa pessoa para mudanças é que vai ser o grande motivador. Mas é claro que a gente encontra em cursos agricultores ou técnicos extensionistas resistentes. E as ferramentas didáticas e as trocas de experiências vêm exatamente para romper algumas barreiras. Mas na educação agroflorestal ninguém convence ninguém. A gente oportuniza situações de aprendizagem para que a própria pessoa chegue à conclusão.

É comum ver crianças desenhando casas com telhado em formato do V invertido, que é um padrão europeu, ou escolas indígenas com desenhos de navios e submarinos e você citou também o exemplo do “Ivo viu a uva”. O que tem de errado com esses exemplos?

São realidades completamente desconexas em que as pessoas não conseguem fazer ligações com o seu cotidiano. O maior exemplo pra mim é a Matemática. Porque os jovens, as crianças e os adultos têm pavor de matemática? Porque é totalmente abstrato. Não se faz um casamento entre a matemática e o cotidiano da vida das pessoas. E não é difícil fazer isso. A gente usa matemática pra tudo. Como usar a matemática na agricultura, será que dá? Quando vai começar um roçado a gente pode fazer um cálculo de área, número de sementes ou de árvores por hectare, produtividade, número de frutos. A gente precisa de transformação e de usar a criatividade. A gente meio que esqueceu isso.

Você defende uma valorização das escolas rurais, mas infelizmente, salvo raríssimas exceções, essas escolas são o retrato do abandono dos poderes públicos. Como fazer essa valorização?

Começa pela valorização do próprio profissional, do educador como educador. Condições de estrutura física, de formação continuada desses professores, da utilização de novas técnicas, de novos métodos e aí vem a educação agroflorestal, que é perfeita para ser trabalhada pelos professores da rede pública, que precisam se reciclar, precisam se conscientizar da importância que elas têm na vida das pessoas. A gente vê muito por aí, devido à dificuldade de isolamento, de transporte, de recursos, os professores se desanimando. São poucos dias letivos por ano. A estrutura física é deficiente. Muitos professores têm dificuldade de se adaptar na zona rural e por isso há muita rotatividade de professores. Material didático às vezes chega pelo governo federal, mas em muitos casos o professor não se sente à vontade pra usar ou não sabe como usar. Ou não tem adequação à realidade local. Vi um livro e no tópico que falava sobre agricultura a primeira foto que tinha era um avião jogando agrotóxico em cima de uma cultura. Trabalhar isso em uma escola de ribeirinhos de uma comunidade amazônica ou numa aldeia indígena? Então precisa ter um trabalho com mais carinho, com mais amor, com mais atenção nas escolas, principalmente na zona rural. A gente não pode continuar investindo 3 ou 4 % do PIB na Educação. Revolução é investir 30% do PIB na Educação. Eu defendo isso.

* Publicado originalmente no site Pauta Socioambiental.