“O petróleo tem que ser nosso”

Conjuntura coloca desafios para a totalidade dos movimentos sociais.

O movimento social, sindical e estudantil faz esforços para se organizar desde antes do anúncio da descoberta de óleo na gigantesca camada do pré-sal, em setembro de 2008. Em março daquele mesmo ano, um dos primeiros passos do movimento foi a formação do “Fórum Contra a Privatização do Petróleo e do Gás”, no Rio, em oposição aos leilões dos blocos petrolíferos, em áreas do pós-sal. Nessa longa estrada, a campanha “O Petróleo Tem Que Ser Nosso”, como foi batizada, alcançou a sua V Plenária, nos dias 7 e 8 de abril, em Belo Horizonte. Cada um dos encontros correspondeu a um momento diferente da conjuntura e do tempo político nacional, no que se refere à disputa de projetos com a sociedade.

É fato que a conjuntura alterou-se bastante desde a plenária anterior, feita em Guararema (SP), no segundo semestre de 2009, com a aprovação no Congresso dos quatro Projetos de Lei enviados pelo governo Lula, concluídos em dezembro de 2010, consolidando o modelo de partilha de produção no marco regulatório para as áreas do pré-sal – aquelas ainda não vendidas. Nesse cenário adverso, é um desafio dar visibilidade para o Projeto dos Movimentos Sociais (Projeto de Lei 531/09, em tramitação no Senado). No projeto, estão presentes os anseios estratégicos sobre o tema: sobretudo o monopólio estatal das reservas, operadas por uma Petrobrás 100% estatal e pública.

Pautas

A pauta, neste momento, deve ser ampliada para uma disputa sobre qual o destino da renda petrolífera, incluindo aí o Fundo Social, cujos mecanismos ainda estão em aberto. A polêmica renda indireta dos royalties também deve ser colocada na lista de pautas, uma vez que, da forma como está, não tem repercutido de maneira benéfica para as populações das cidades dos Estados de maior arrecadação. “Temos claro qual é a nossa orientação estratégica e os objetivos da campanha. Mas sabemos também que é preciso intervir na política real, e acumular forças a partir disso. Para dar um exemplo: foi citado na plenária o projeto da Lei da Ficha Limpa, por conseguir aglutinar setores da sociedade a participar. Percebam que ainda é um passo, dentro de algo maior e mais estratégico que é a Reforma Política e que ainda não foi tocada“, analisa Joba Alves, do MST.

Dentre os princípios reforçados na V Plenária da Campanha, foi apontada a urgência de uma articulação com setores da sociedade, sobretudo ambientalistas, militantes de base da Igreja, e organizações no campo e nas periferias, bem como a ampliação de debates na esfera institucional, por meio de audiências públicas. Inserir nesse temário pontos como riscos nos locais de trabalho de produção de petróleo, e também os riscos ambientais, são questões que dialogam com a atual conjuntura. Junto a isso, para o trabalho de agitação e conscientização, foi sugerido pelas organizações presentes o tema de maiores subsídios para o preço do gás de cozinha.

A atuação com unidade foi reforçada uma vez mais pelo movimento, o que não exclui ações de trabalho de base e iniciativas nos Estados. Nesse meio-tempo, entre os encontros de Guararema e Belo Horizonte, Estados como Rio de Janeiro e Paraná, por meio dos sindicatos petroleiros, desenvolveram trabalho de base sobre o tema em escolas, com concursos de redações. Deve ser mantida a produção de cartilhas e dados junto ao Dieese para quantificar esta riqueza para o povo, como trabalho de conscientização. “Frente à conjuntura, temos o projeto da caravana escolar, levando o trabalho de conscientização dos alunos de ensino médio, o pré-sal é importante, dentro dos cursos técnicos que estão se abrindo, com vários campos de trabalho, estamos trabalhando isso no Paraná. O pré-sal qualifica o estudante dentro dos ramos de petróleo. O investimento que o pré-sal vai trazer para o povo brasileiro”, disse Armando Alves Marcolino, o “Sorriso”, do Sindipetro-PR/SC. O pré-sal não só para a BR mas a gestão dos Estados não está preparada para isso, avalia. Não temos técnicos. A gestão dos Estados não está preparada. Com unidade, com a coleta de assinaturas, indo para a rua, e barraca de assinaturas. Temos visto que o debate tem peso político nas universidades.

A percepção de que a Campanha se ressente de uma ampla gama de setores é algo ligado a um dos seus principais objetivos: evitar a aceleração da extração para a queima de óleo combustível. “O pior cenário será o petróleo ser produzido para a exportação”, comenta Francisco Soriano, do Sindipetro-RJ. O objetivo é convencer a sociedade de que o saqueio não pode se dar em dois planos: nem na extração desenfreada, tampouco na distribuição dos recursos que chegam às cidades. Em suma, a opção de ignorar o tema, sob o argumento de deixar o petróleo no fundo do oceano, não existe na vida política real.

Todos os olhos

A vinda ao Brasil do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, reforça a percepção do esgotamento das fontes energéticas da maior economia do mundo. Com isso, as reservas brasileiras ganham nova dimensão, uma vez que as revoltas populares no Oriente Médio e Norte da África colocam incerteza sobre fontes antes garantidas para o Império, sobretudo no enclave da Líbia. Com isso, novamente petróleo e imperialismo voltam a ser analisados em conjunto. Os movimentos sociais brasileiros prometem levantar o tema no dia 12 de outubro, data aprovada ainda no Fórum Social Mundial como forma de denúncia da agressão do imperialismo contra os povos. Também serão buscados espaços para debates nos encontros da Alba Movimentos (novembro) e nas jornadas de lutas de junho e agosto, dos movimentos sociais, sindical e estudantil.

Para este semestre, das lutas apontadas pelo plenário da campanha, a principal talvez seja a luta contra futuros leilões. A décima rodada dos leilões pode acontecer ainda no primeiro semestre de 2011. Os alvos são as áreas off-shore, onde ainda impera a Lei 9478/97, do governo FHC. A oitava rodada, por sua vez, já realizada, continua em impasse na Justiça. Nas áreas do pré-sal ainda não leiloadas (dois terços), o monopólio nos consórcios é da Petrobrás. Porém, é fato que, desde o início da Campanha, aponta-se que um terço do pré-sal (38%) tinha sido leiloado antes da aprovação do atual marco regulatório e do modelo de partilha. Hoje, um dos riscos reside na compra por parte de empresas chinesas, por meio de fusões com grupos detentores de áreas já leiloadas. A estatal Sinochem comprou 40% do Campo de Peregrino, na Bacia de Campos, da norueguesa Statoil, a ser explorado nos próximos meses. Em 2010, as estatais chinesas investiram US$ 15,7 bilhões em empresas de petróleo na América Latina.

A Campanha “O petróleo Tem Que Ser Nosso” deve se preocupar com os recursos minerais como um todo. O caso da companhia Vale é exemplar, símbolo da extração intensiva de recursos naturais voltados para a exportação. O baixo índice de royalties nos locais de exploração guarda uma reserva grande de crítica dos municípios contra a transnacional. “O Brasil é o país que menos recebe royalties da exploração de seus recursos naturais. No petróleo chega a 10% e na mineração não chega nem a 3% do rendimento bruto”, indica Paulo Cesar Ribeiro de Lima, consultor legislativo da Câmara dos Deputados, presente na primeira mesa da plenária.

O fator petróleo, seus riscos

A gestão das reservas do pré-sal deixa espaço para dúvidas. É um consenso de que a atual legislação petrolífera melhora em comparação à Lei 9478, do período do governo FHC, presente ainda nos blocos leiloados e nas áreas off-shore. Mas os mecanismos da nova lei são alvo de dúvidas, submetidos aos interesses econômicos em jogo sobre o pré-sal. Como plano estratégico, as teses do projeto dos movimentos sociais seguem atuais, sobre o monopólio estatal. No plano imediato, uma série de emendas propostas ao projeto da partilha reivindicam uma cota mínima para o Estado, nos contratos de partilha, nos consórcios formados com a Petrobrás.

No plano macroeconômico, economistas como Carlos Lessa chamam a atenção para o risco da famigerada “doença holandesa”, quando toda a economia volta-se a apenas um ramo de produção (e a indústria petroleira é muito atraente nesse sentido), forçando o país a recorrer à importação e tornando os outros setores dependentes e desestruturados. Frederico Romão, professor da Universidade Federal do Sergipe, não acredita no risco de uma desindustrialização no país causada pela economia do petróleo. Porém, para ele, o molde de exploração deve ser semelhante ao que se dá nos países africanos. “Não acredito que venha a provocar uma desindustrialização, mas a exploração predatória, nos moldes do que aconteceu particularmente na África”, critica.

No mundo, o sistema de Fundos Soberanos (Sovereign Funds) é uma ferramenta de aplicação internacional dos recursos como a renda petrolífera, frente ao temor de uma injeção de capitais na economia local de modo a sobrevalorizar a moeda. De acordo com os estudos de Romão, os Fundos Soberanos existem em 50 países há pelo menos meio século. Hoje, mais de US$ 4 trilhões circulam nesses fundos. Aplicados no mercado internacional, não fica descartado tanto o uso do mercado financeiro (aplicação em títulos de dívida dos países), como o risco de intervenção política sobre os fundos. Segundo Romão, isso acontece agora, quando a Líbia teve seus recursos bloqueados.

A crítica especializada aponta que este formato do Fundo Soberano não soluciona os problemas da população. “Apenas se combater a desigualdade social brasileira, senão não é soberano”, adverte Romão. No Brasil, o Fundo Soberano foi criado em 2008. No entanto, a ferramenta em disputa para a distribuição de renda é o Fundo Social. “Como princípio, há uma positividade dos fundos sociais”, afirma Romão. Seu mecanismo ainda precisa se concretizar, o que depende de mobilização social, para que o direcionamento em políticas para ciência e tecnologia, combate à pobreza, etc. – como aponta o texto da nova lei – de fato tenha esse destino. Para que o fundo não seja apenas uma injeção de recursos sem planejamento, Romão sugere a criação de conselhos deliberativos locais, experiências presentes no caso da Saúde e Educação.

O projeto do Fundo Social, aprovado no dia 2 de dezembro de 2010, tem previsto dois conselhos, um deles reunindo três Ministérios da área econômica. Esta configuração recebe a crítica de Romão. “Comitê de gestão financeira do Fundo Social, definido pelo Executivo, define a política de investimentos. Por que aqui na largada não tem um ministro de desenvolvimento agrário?”, questiona o pesquisador. “Como é que logo no início os Ministérios da área social não estão ali? A sociedade tem que discutir”, finaliza.

* Publicado originalmente no site do Brasil de Fato.