Forte ligação partidária dos dirigentes de estatais estaduais e opacidade nos contratos firmados por elas constituem alto risco de corrupção, dizem analistas
Por Bruno Vieira e Fabiano Angélico, para a Agência Pública –
A Operação Lava Jato apresentou ao Brasil e ao mundo uma teia de corrupção envolvendo empresas públicas federais – com destaque para a Petrobras –, empresas privadas, “operadores”, lobistas, políticos e partidos políticos. Essencialmente revelou que diretores de empresas estatais, indicados por partidos (ou a eles ligados), atuavam para desviar verba pública por meio de contratos e operações fraudulentas.
Encabeçada pelo Ministério Público Federal (MPF), a Lava Jato aborda, por uma questão de atribuição, somente a administração pública federal – ministérios e as estatais federais como Petrobras, Eletrobras e Caixa Econômica Federal. Mas um observador mais atento não deixará de se lembrar de escândalos recentes envolvendo governos estaduais e suas empresas públicas – que, por serem estaduais, estão fora do alcance imediato do Polícia Federal e do MPF:
1. O chamado “mensalão do DEM” usava a empresa pública de planejamento econômico do Distrito Federal, a Codeplan, para, segundo a Polícia Federal, desviar dinheiro público por meio de contratos fraudulentos. O escândalo levou à queda do então governador José Roberto Arruda.
2. O chamado “mensalão do PSDB”, esquema que, segundo o Ministério Público, envolveu contratos de empresas públicas como Cemig e Copasa, em Minas Gerais.
3. O chamado “trensalão”, que seria a formação de cartel junto ao Metrô, empresa do governo do estado de São Paulo.
Levando em conta esse histórico de escândalos envolvendo governos estaduais e suas empresas públicas e o modus operandi revelado pela Operação Lava Jato, uma pergunta óbvia é: estariam as empresas dos estados igualmente sensíveis às ingerências políticas? Estariam tais estatais fraudando contratos em favor de empresas privadas e partidos políticos?
Para tentar responder a essas questões, a Pública começou listando as dez maiores empresas públicas brasileiras em nível estadual. Juntas, as estatais listadas abaixo, sediadas em oito estados diferentes, faturaram R$ 52,7 bilhões em 2014.
A reportagem compilou então o nome dos 77 dirigentes – presidentes, vice e diretores – dessas dez estatais. A partir dessa listagem, chegamos a informações sobre filiação partidária deles e à participação desse grupo nas sete eleições ocorridas no Brasil neste século até agora (entre 2002 e 2014).
Além de se tratar de um universo majoritariamente masculino – apenas quatro cargos de direção são ocupados por mulheres –, o perfil dos 77 dirigentes demonstra que quase metade é filiada a partidos políticos e/ou fez doações a campanhas em ao menos uma das últimas sete eleições – e um quinto deles já foi candidato a algum cargo eletivo no período de 2002 a 2014.
No infográfico abaixo, está apresentada, além dos nomes dos dirigentes, a participação deles em eleições, seja como candidatos – nove chegaram a se candidatar – ou como doadores a campanhas eleitorais. Além disso, mostramos a filiação partidária de cada um deles (dados de julho de 2015).
No caso dos dirigentes que foram candidatos, está acessível (a partir do infográfico) a ficha de candidatura, que inclui a relação patrimonial apresentada à Justiça Eleitoral à época da eleição. Quanto aos dados sobre doações: ao navegar pelo infográfico, é possível verificar para qual político (ou para qual partido) o atual dirigente de empresa estatal doou e qual foi a quantia.
Direto do mundo político
Na Petrobras, os ex-diretores presos e condenados após os desdobramentos da Lava Jato – como Paulo Roberto Costa e Nestor Cerveró – não são políticos propriamente ditos: o esquema se valia de intermediários (os tais “operadores”, do PP, do PMDB e do PT e lobistas) para chegarem aos políticos e aos partidos. No caso dos estados é diferente: em muitas das diretorias, não há intermediários entre os dirigentes das estatais e o mundo político. Evidentemente não é crime o fato de um dirigente de empresa estatal ter ligações diretas com partidos políticos, mas chama atenção a quantidade de diretores que são filiados a partidos políticos, fizeram doações de campanhas a políticos e chegaram mesmo a se candidatar.
Soma-se a isso o fato de que as campanhas eleitorais no Brasil são muito caras – e estão cada vez mais dispendiosas – e tem-se um quadro de preocupação, pois há o risco de as empresas estatais estarem sendo usadas não apenas para o enriquecimento ilícito de agentes públicos e privados, mas também para engrossar ilegalmente o caixa de campanhas políticas, como se viu, por exemplo, no caso do mensalão tucano em Minas Gerais.
A relação entre os dirigentes de empresas públicas estaduais se nota para além da participação deles em eleições: alguns deles têm parentesco com personalidades do Poder Executivo – caso do diretor de gás da Cemig (MG), Eduardo Andrade, filho do vice-governador de Minas Gerais, Antônio Andrade (PMDB), e do diretor de operação centro-leste da Copasa (MG), Frederico Delfino. Mais conhecido por Fred Ferramenta, ele é filho de Chico e Cecília Ferramenta, casal de políticos atuante no Vale do Aço mineiro: Chico é ex-prefeito de Ipatinga, enquanto sua mulher Cecília é a atual prefeita da cidade.
O cientista político Bruno Reis, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (DCP-UFMG), destaca o “benefício” auferido a um político que ocupa uma diretoria de empresa estatal. “Mesmo que esse político não se enriqueça, a vantagem dele é ganhar um fluxo permanente de recurso para as suas campanhas. Posteriormente, ele pode alocar alguém numa estatal, em posição decisória [como num cargo de direção] e com isso decidir em favor do financiador, alimentando esse círculo vicioso”.
“Menos holofotes”
Bruno Reis chama atenção também para a menor visibilidade das empresas estaduais em relação às estatais federais. “É mais fácil controlar os atos do governo federal do que dos governos estaduais, porque não há tantos holofotes para os estados, que são uma zona particularmente opaca – o estado não é nem o governo federal nem a prefeitura, ente que está mais próximo da vida cotidiana do cidadão. Em termos de autonomia e rigor, até que você ganhe força para aplicar o controle e a fiscalização, é necessária uma institucionalização dos órgãos estaduais que pode demorar bem mais tempo que tal processo em nível federal”, aponta Reis.
Essas “áreas de sombra”, pouco fiscalizadas, aumentam o risco de tráfico de influência, destaca o pesquisador. “Numa democracia, o lobby acontece e faz parte da política, porque ninguém participa do processo democrático apenas na votação – de quatro em quatro anos – e fica em casa lendo o jornal aguardando as notícias do seu representante. É uma ideia maluca dizer que não existe lobby, que é exercido tanto por macro corporações, como a Confederação Nacional da Indústria, quanto por ONGs, associações e pela própria sociedade civil em busca dos seus interesses. Outra coisa é tráfico de influência, que visa à captura de contratos corrompidos para fornecedores que vão dar dinheiro por meio de caixa dois”, observa o professor do DCP-UFMG.
Personagem-símbolo
Um dos diretores da Celesc, de Santa Catarina, Ênio Andrade Branco é um personagem que pode simbolizar essa proximidade com o mundo político e essa “falta de holofotes” em nível estadual. O atual diretor de Geração, Transmissão e Novos Negócios da Celesc foi filiado ao DEM entre 2009 e 2013. Citado em operação da Polícia Federal sobre Carlinhos Cachoeira, já sofreu processos e admitiu que conhecia o ex-senador Demóstenes Torres, cassado por suas conexões com o bicheiro.
Durante as eleições de 2010, Ênio participava, com correligionários do Democratas de Goiás, de encontros mensais do DEM nacional, em São Paulo. Um dos seus colegas de partido era Demóstenes – que foi flagrado, em escutas telefônicas, em conversas com o contraventor Carlinhos Cachoeira discutindo transferências de dinheiro. As investigações da Operação Monte Carlo sugeriam que o governo de Santa Catarina possuía elos da corrente de Cachoeira no alto escalão. O nome citado pela Polícia Federal na operação é justamente o de Ênio Branco, que assumiu, no governo de Raimundo Colombo (PSD), a SC Participações (SCPar), estatal catarinense criada para cuidar das parcerias público-privadas (PPP) estabelecidas no estado. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, em 2011 houve negociações entre Ênio e emissários de Cachoeira com o propósito de acertar o contrato para a construção de uma rodoviária em Florianópolis.
Em nota emitida à época, o diretor afirma que conhecia Demóstenes desde 2007 e que recebia, na condição de diretor da SCPar, telefonemas dele e de outras pessoas – físicas e jurídicas – “solicitando recepcionar grupos empresariais interessados em investir em nosso estado”. A respeito de Cachoeira, Branco afirma: “[tive] raros contatos, especialmente em encontros de natureza social, em face da minha responsabilidade como presidente da Companhia Energética de Goiás não guardar relação com interesses empresariais do mesmo, haja vista que, publicamente, aparecia como empresário das áreas de remédios e agronegócio”.
Além da Celesc, Ênio já trabalhou na Celg, em Goiás, durante o governo Marconi Perillo (PSDB). A companhia goiana criou o cargo de diretor de Relações com Investidores em 2005, e seu primeiro titular foi o catarinense Ênio Branco – que deixou em Florianópolis o cargo de diretor econômico-financeiro da companhia elétrica estadual. Em maio de 2007, já no governo Alcides Rodrigues (então no PP), Ênio assumiu a presidência da Celg.
Sua gestão à frente da companhia teve como resultado bens bloqueados por causa de uma ação que questionava um contrato terceirizado. A decisão foi resultado de um questionamento do contrato firmado entre a Celg e a empresa Evoluti Tecnologia em 2008. Conforme auditoria realizada pela própria Celg em 2009, em sete meses de vigência do contrato houve prejuízo de R$ 3 milhões. Por causa dessa situação, o juiz Lusvaldo de Paula e Silva, da 1ª Vara Cível de Goiás, ordenou o bloqueio dos bens de Branco e de outros quatro diretores, proibiu a renovação do contrato questionado e relatou que “a gama de irregularidades cometidas, a ineficiência e o descaso para com o patrimônio da sociedade impressionam”.
O atual diretor de negócios da Celesc possui também um cargo de direção na Sociedade de Propósito Específico (SPE) Rondinha Energética S/A, empresa de capital privado que controla as atividades da pequena central hidrelétrica (PCH) Rondinha, situada em Passos Maia, oeste de Santa Catarina. A Celesc possui participação de 32,5% na empresa (o restante – 67,5% – é detido pelo grupo investidor Atlantic, que possui sede em Curitiba). A Celesc informou, por meio da assessoria de imprensa, que a cadeira de diretor da Rondinha é assumida pela Diretoria de Geração, Transmissão e Novos Negócios porque é a área afim das parcerias que o Grupo Celesc detém nesses empreendimentos e que “não há entre a Empresa e a SPE qualquer contrato de compra ou venda de energia”. A nota pontua ainda que a empresa pública de Santa Catarina tem, como sócia, “único e tão somente direito ao recebimento dos dividendos das operações efetuadas”. A nota afirma ainda que “a Celesc entende que esta é uma situação legítima e livre de conflito de interesses”.
Contratos públicos, acesso restrito, transparência opaca
O esquema da Petrobras, revelado pela Lava Jato, e os esquemas estaduais citados no começo da nossa reportagem utilizavam-se, segundo as investigações, de contratos com empresas privadas para efetuar o desvio de recursos. Diante disso, a reportagem da Pública testou o grau de transparência das dez empresas selecionadas no que diz respeito aos contratos firmados por elas, solicitando informações sobre três itens relativos a contratos vigentes:
1. Modalidade de licitação;
2. Produto ou serviço contratado; e
3. Nome da empresa contratada.
A modalidade de licitação é importante para verificar se houve de fato concorrência ou se houve algum tipo de contratação direta. O produto ou serviço é uma informação relevante porque dá materialidade à contratação – é importante saber o que o Poder Público está comprando, até para verificar se de fato o produto ou serviço foi entregue. E o nome da empresa é fundamental para verificar para onde está indo o dinheiro público.
Mas o resultado do teste de transparência foi bastante insatisfatório: há, entre as empresas públicas estaduais, um claro desrespeito à Lei 12.527/2011, conhecida como Lei de Acesso à Informação (LAI). A LAI determina que União, Estados, Municípios e o Distrito Federal disponibilizem informações concernentes às suas atividades e abarca, também, a Administração Indireta.
Das dez empresas, apenas duas, a Celesc (SC) e a Sanepar (PR), trazem em seus sites algumas informações sobre os contratos firmados. E nenhuma delas disponibiliza proativamente todas as três categorias de informação buscadas pela reportagem. Dentre as outras oito empresas, foi possível obter apenas alguns dados a partir de pedidos de acesso à informação formulados pela reportagem – e foi necessário interpor recursos em vários casos, já que a primeira reação das empresas era, em geral, a recusa.
O nível de opacidade fica evidenciado por algumas respostas recebidas e uma omissão deliberada:
• A empresa fluminense Cedae exige que o pedido seja feito em papel, contrariando o dispositivo da LAI que determina a utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação. A reportagem protocolou o pedido, mas não obteve nenhuma resposta, num evidente desrespeito à lei;
• A Celg (GO) respondeu à reportagem que o “pleito” deveria ser formulado “via ofício endereçado ao Sr. Presidente da Celg” e “enviado ao presidente da Celg, por ofício”, num claro desrespeito à Lei de Acesso, que estabelece a publicidade como regra geral e determina a utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação. Após recurso, a empresa indicou uma seção em seu site onde se encontram dados sobre licitações – mas não sobre os contratos ativos.
• A Cemig (MG) informou que um decreto estadual (de 2012) a exime de atender à LAI – decreto que pode ser questionado, pois contradiz uma lei federal – e indicou uma seção em seu site que traz informações sobre licitações. A página indicada, no entanto, não apresenta nenhum dos três itens buscados pela reportagem;
• A Cesp (SP) respondeu que a listagem de contratos estaria disponível apenas fisicamente, indicando hora e local para consulta. Após recurso, foi enviada uma listagem;
• Após recursos, a Sabesp (SP) enviou uma listagem digitalizada pouco legível e em formato fechado, o que dificulta análises e comparações.
De todas as dez empresas, apenas uma – a gaúcha CEEE – respondeu adequadamente à solicitação de dados, encaminhando a resposta em arquivo de formato aberto e dentro do prazo, ainda que não houvesse sua disponibilização em seu site.
O quadro abaixo demonstra o grau de opacidade das maiores empresas estatais em nível estadual no Brasil.
Para Joara Marchezini, oficial de projetos da área de Acesso à Informação da ONG Artigo 19, ainda persistem dificuldades para as empresas públicas cumprirem a Lei de Acesso à Informação. Algumas empresas utilizaram a estratégia de colocar algumas informações como sigilosas para que não fossem divulgadas, entre outros subterfúgios. “O mundo das empresas públicas tem a ideia de que a disponibilização poderá atrapalhar o seu funcionamento ou a concorrência. Há algumas informações que, sim, poderiam ser sigilosas, mas isso é exceção, não a regra. Estamos falando de disponibilizar aquilo que é público, de promover às pessoas a oportunidade de verem como andam a gestão e a execução dos objetivos da empresa”, reitera.
Para a especialista, os contratos são um tipo de informação que já deveria ser tornada pública, de maneira ativa. “Existe uma falha que é as empresas não entenderem que fornecer esse tipo de informação é uma obrigação. Quando não se consegue acesso, o cidadão é desrespeitado no seu direito. Nem teria que haver necessidade de solicitar, tudo já deveria estar online”, afirma.
“Barganha política”
Para o cientista político e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) de São Paulo Marco Antonio Teixeira, “a Administração Direta [ministérios e secretarias] tem os olhos da sociedade e dos órgãos de controle, mas as entidades da Administração Indireta [empresas, autarquias, fundações] são uma caixa-preta e provavelmente ainda não são muito republicanas”.
Segundo ele, especialista em temas de transparência e controle, as estatais são objeto de desejo porque ali o controle é mais frágil. “A barganha política se desloca para essas áreas não tão visíveis”, complementa o professor do Departamento de Administração Pública da FGV-SP. (Agência Pública/ #Envolverde)
* Colaborou Gisiela Klein.
** Publicado originalmente no site Agência Pública.