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Negócio italiano dos resíduos tóxicos vai de vento em popa

Nápoles, Itália. Foto: Divulgação
Nápoles, Itália. Foto: Divulgação

Nápoles, Itália, 19/12/2013 – A beleza da baía de Nápoles sob o cair do sol, o romantismo de Sorrento e o esplendor cênico da costa de Amalfi atraem dezenas de milhares de visitantes ao sul da Itália, mas poucos sabem que a região esconde uma suja verdade. A área entre Caserta e Nápoles, na região sudeste da Campania, é conhecida como “o recipiente de lixo” da Itália, graças à Camorra, a organização mafiosa napolitana.

Este país produz cerca de cem milhões de toneladas de lixo ao ano, e mais de um terço a Camorra o esconde. O crime organizado começou cobrando das indústrias do norte para colocar seus dejetos tóxicos em lixões de Campania, especialmente no de Resit em Giugliano. A eliminação de resíduos, um setor pouco regulamentado, era uma frente fácil para gerar e lavar dinheiro.

“Há 20 anos que erguemos nossa voz, mas sem nenhuma resposta do governo. Não querem escutar”, afirmou Antonio Pergolizzi, da organização ambientalista Legambiente, que investiga o assunto desde 1994. A Legambiente inclusive criou o termo “ecomáfia”.

A legislação italiana sobre disposição de resíduos sólidos foi adotada em 2001, mas sem normas adequadas para comprovar sua correta eliminação, e foi reformada em 2006 para incluir 152 novos tipos de crimes ambientais, como a eliminação ilegal e o tráfico organizado de resíduos. Mas, em 2010, soube-se que as medidas adotadas pela i9talia para limpar Nápoles infringiam a legislação da União Europeia (UE), e esta enviou uma equipe de inspeção até Campanha. Em 2012, a UE ameaçou com uma ação judicial contra a Itália.

“A ecomáfia está jogando substâncias tóxicas nos morros, nas terras, nas águas, sem nenhum cuidado com os aquíferos ou o meio ambiente e com graves consequências para a comunidade”, afirmou Pergolizzi em um encontro internacional de jornalistas em Castell dell’Ovo, no passeio marítimo de Nápoles, organizado pela entidade não governamental Greenaccord.

Este esquema foi retratado em 2006 no livro Gomorra, onde o jornalista Roberto Saviano detalha o funcionamento da Camorra napolitana e o negócio ilegal do lixo.

A crise do lixo está quase institucionalizada, já que para as empresas é mais barato pagar o crime organizado para que se desfaça de seus resíduos e até mesmo os envie ilegalmente para outros países, segundo o advogado antimáfia Franco Roberti. Ele garante que as máfias agora também fazem alianças com outros setores não relacionados com os resíduos. “Buscam empresas para financiar, conceder fundos, lavam dinheiro. A economia limpa da Itália está cada vez mais suja”, afirmou. sabe-se que parques eólicos e outros desenvolvimentos de energias limpas são construídos com dinheiro das máfias.

Pergolizzi sustenta que o crime organizado está dominando a construção de estradas e outros contratos e utiliza os sites de construção para misturar cascalho com resíduos tóxicos “em todo norte e sul da Itália”. A construção imobiliária nestas áreas de despejo de resíduos se converteu em um negócio rentável para as máfias. A Legambiente calcula que o despejo ilegal de resíduos tóxicos em terras agrícolas e imobiliárias italianas movimenta mais de US$ 26 bilhões por ano.

O negócio inclui inclusive os materiais recicláveis, como plásticos, com graves consequências ambientais, alerta a Legambiente. “Agora temos um grupo de fábricas de reciclagem, mas não têm matérias-primas. Todos os materiais recicláveis são desviados”, destacou Pergolizzi. Na fábrica SRI, em Caserta, um empregado informa que agora as autoridades controlam rigidamente o transporte de resíduos recicláveis para a fábrica, que separa plásticos, papelão e lata e os envia para as empresas de reciclagem.

O  novo prefeito de Nápoles, Tommaso Sodano, um ex-juiz novato na política, disse ter um interesse pessoal na reciclagem e na crise do lixo. “Meu trabalho como juiz foi a razão principal para entrar na política. Nos dois empregos houve e há obstáculos que são parte do meu trabalho”, disse Sodano aos jornalistas.

O despejo indiscriminado de produtos tóxicos praticado pela Camorra em Campania está relacionado com o aumento de casos de certos tipos de câncer e de malformações congênitas. Em duas décadas, a quantidade de tumores em homens da região aumentou 47% e em mulheres 40%, segundo informação da BBC. No começo deste mês, dezenas de milhares de pessoas protestaram nas ruas de Nápoles, algumas com cartazes mostrando fotos de crianças que morreram de câncer, pedindo a limpeza imediata da região.

Pela influência que a religião exerce na sociedade italiana, o presidente da Greenaccord, Alfonso Cauteruccio, acredita que a autoridade moral da Igreja Católica deveria ser usada para enfrentar este problema. O arcebispo de Nápoles, Crescenzio Sepe, sugeriu que negar o sacramento da comunhão aos católicos que contaminam pode ser um elemento de dissuasão. O papa Francisco também se interessou pelo assunto e enviou uma mensagem à reunião em Nápoles, dizendo que jornalistas e cientistas devem trabalhar juntos.

O primeiro passo é tomar medidas práticas, disse o advogado Roberti. “Não há coordenação entre os órgãos que obtêm evidências. Faltam fundos para lutar contra a corrupção. Precisamos reorganizar nosso sistema judicial”, afirmou. “A ligação é muito profunda”, segundo Antonio Giordano, diretor do Instituto Sbarro para a Pesquisa do Câncer e da Medicina Molecular, com sede em Filadélfia, nos Estados Unidos, que apontou os ministérios da Saúde e do Meio Ambiente. “A culpa é de quem está no poder, que sabia e nada fez nos últimos 30 ou 40 anos”, afirmou. Envolverde/IPS