São Paulo, Brasil, 27/8/2013 – Os grandes projetos amazônicos repercutem hoje mais pelos seus conflitos que pelo desenvolvimento que podem propiciar. Na guerra pelas grandes usinas hidrelétricas perdem todos, inclusive os vencedores, que conseguem construí-las mas com atrasos, custos estéreis e a imagem abalada.
“A polarização empobrece o debate” sobre o aproveitamento e a conservação dos recursos naturais, lamenta Pedro Bara Neto, líder de Estratégia da Infraestrutura, na Iniciativa Amazônia Viva do Fundo Mundial para a Natureza (WWF).
O WWF se destaca no meio ambientalista por buscar saídas negociadas para a disputa entre a lógica econômica e a natureza. No caso das hidrelétricas, propõe um diálogo para resolver confrontos entre os empreendedores, aí incluído o governo, e uma variada oposição de atingidos, movimentos sociais, indígenas e ambientalistas.
O objetivo seria traçar uma estratégia para a Amazônia, ou pelo menos para bacias inteiras, superando a abordagem projeto a projeto, sem parâmetros validados. Para isso o braço brasileiro do WWF desenvolveu uma ferramenta baseada em pesquisas científicas que permite ter uma ideia do que é necessário preservar de águas e biodiversidade para manter vivo o sistema amazônico.
Bara explicou à IPS como se elaborou essa plataforma e as propostas da sua organização.
IPS: Como proteger a natureza amazônica ante o avanço das hidrelétricas, do gado, soja, madeireiras, mineração, estradas?
PEDRO BARA: Nós fizemos essa pergunta há seis anos. Resolvemos nos perguntar: o que precisamos conservar da Amazônia lá na frente? Não é 100% do remanescente de hoje, mas também não pode ser tudo para o desenvolvimento. Se conhecêssemos toda a biodiversidade, seria fácil definir áreas prioritárias a conservar. Mas a informação sobre biodiversidade amazônica não oferece dados suficientes para isso. Quando muito, acho que conhecemos uns 40%, no geral. Fomos obrigados a inferir a biodiversidade por meio da heterogeneidade do ambiente. Ambientes diferentes vão ter espécies diferentes. Faz-se uma aproximação. Fizemos vários testes em Madre de Dios (região do sudeste do Peru), sobre como planejar a conservação da água em áreas pobres de dados. Concluímos que cruzando declividade com escoamento superficial e vazão, com vegetação e origem da água, consegue-se uma boa explicação da heterogeneidade aquática e classificação dos rios por segmentos. Expandimos esse modelo para a Amazônia inteira.
IPS: Escolheram Madre de Dios porque sua ecologia é representativa da Amazônia?
PB: Não, usamos Madre de Dios como piloto porque tem características bastante diversas. Se fosse homogênea não serviria. Tínhamos que trabalhar com bastante diversidade de ambientes, para testar vários modelos e escolher o melhor para aplicar na Amazônia toda, onde identificamos 299 classes de ecossistemas aquáticos. Ao mesmo tempo a The Nature Conservancy e a NatureServe (organizações criadas por cientistas norte-americanos) desenvolveram um modelo de heterogeneidade terrestre baseado em relevo, tipo de solo, cobertura vegetal e clima. Identificaram 423 ecossistemas terrestres na Amazônia. Conclusão: a Amazônia é mais diversa sob o ponto de vista terrestre que do aquático. É também uma aproximação porque há espécies animais que se movem muito. Mas com os dois modelos posso decidir o que conservar. Se posso conservar uma amostra representativa, funcional, resiliente, das 299 classes aquáticas e 423 terrestres, teoricamente conservo a heterogeneidade e a biodiversidade amazônicas.
IPS: Mas como escolher áreas prioritárias para a conservação?
PB: Pela melhor relação custo-benefício, minimizando a área, numa decisão puramente econômica. Se consigo conservar uma amostra com menor custo e maior beneficio.
IPS: Como se mede o custo e o benefício?
PB: Beneficio é a oportunidade, são por exemplo as áreas protegidas e terras indígenas, onde é menor o custo de conservar. Custo são as ameaças. Desmatamento, avanço de fronteiras agrícolas e da pecuária são custos terrestres. O modelo elege dentro da mesma classe de ecossistema a área mais distante dessas ameaças que aumentam os custos da conservação. Trata-se de um software montador de quebra-cabeças de milhares de microbacias, cada uma com seus atributos, como pertencer a esta ou aquela classe aquática ou terrestre, a proximidade de estradas, o seu grau de degradação atual. Foge do vermelho, onde o custo é alto, e escolhe a amostra de ecossistema em área protegida. Fez milhares de interações para apontar a melhor solução. Não inventamos nada, usamos metodologias de trabalhos científicos. A Agência Nacional de Águas (ANA) fez um trabalho parecido, o “Plano estratégico dos rios da margem direita do Amazonas”, o que nos deu segurança. Mas há casos em que não tenho opções. A classe 214 aquática, por exemplo, só ocorre num lugar. Se atingida, estará definitivamente perdida. É a “insubstituibilidade”. Há muitas áreas insubstituíveis.
IPS: Então o que vocês propõem conservar?
PB: Estabelecemos uma meta, conservar 30% de cada classe de ecossistema. Mas é só um exercício, a decisão depende de quem está na mesa discutindo os parâmetros. Trinta por cento dos ecossistemas aquáticos mais 30% dos terrestres teoricamente somam 60%, mas como há um pouco de superposição, cai para uns 55%. É razoável, porque hoje já temos 40% definidos em unidades de conservação e terras indígenas. É um número arbitrário, mas com valor técnico.
IPS: Um índice para balizar a negociação?
PB: Começa por aí, chegamos à definição do que queremos, em resposta ao desafio das hidrelétricas. Se concordamos que uma área deve ser conservada para o futuro, é preciso que tenha uma ligação livre com o canal principal, o rio Amazonas, já que a bacia é única. A conservação depende de conectividade hídrica. Se o setor elétrico quer represar todos os rios (de uma bacia), o futuro de uma Amazônia viva será comprometido. Mas tudo é negociável, nossa ferramenta é para propiciar o diálogo, não uma solução pronta. É uma plataforma de avaliação estratégica, para olhar o todo, contextualizar os projetos e decidir com melhores informações. Alguém pode introduzir amanhã a questão dos sítios arqueológicos, dos quilombolas, de atributos especiais. É um sistema aberto à disposição da sociedade.
IPS: Como reagiu o governo a essa proposta?
PB: Apresentamos nossa metodologia a muitos órgãos do governo, estatais, bancos de desenvolvimento. O governo gostou. A receptividade é sempre boa, até que se toca num interesse específico. Para nós o ideal seria discutir a bacia amazônica inteira, mas não conseguíamos organizar um fórum. O caminho foi aberto por uma portaria interministerial de dezembro de 2010, que criou um grupo de trabalho para “analisar aspectos ambientais e socioeconômicos” visando “subsidiar a seleção dos aproveitamentos hidroenergéticos”. Era tudo o que queríamos. Por isso a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), do Ministério de Minas e Energia, quis conhecer nossa ferramenta, capacitamos gente dos ministérios. Eles fizeram sua análise. Mas já se passaram dois anos. Assim, decidimos divulgar nossas propostas, antes que avancem mais os projetos para o rio Tapajós.
IPS: E no setor privado, alguma reação interessante?
PB: Dirigentes de um banco internacional elogiaram nossas ideias, dizendo que morrem de medo de entrar num projeto e por isso ter de encarar uma passeata na porta do banco. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) não poderá financiar tudo sozinho.
IPS: Pode citar um caso em que a ferramenta teria apontado melhores alternativas?
PB: No rio Teles Pires (afluente do rio Tapajós), soube que se pensou em fazer uma só usina, maior que a atual, a Teles Pires, sem duas outras em preparação, São Manoel e Foz do Apiacás. Poderia ter sido melhor, com mais potência e menos impacto cumulativo, além de um reservatório plurianual. O rio tem uma barreira natural e a questão da conectividade não se coloca de forma tão aguda. Há o mito de usinas menores impactarem menos, mas uma sucessão delas fragmenta mais o ecossistema aquático. (Envolverde/IPS)
* Editado em 29 de agosto de 2013.