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Um carnaval em defesa da água na capital chilena

Santiago, Chile, 24/4/2013 – Mais de uma centena de organizações ambientalistas, sociais e indígenas se mobilizaram, no dia 22, na capital chilena, cobrando que o Estado recupere o manejo da água, privatizado pela ditadura em 1981. Na Grande Marcha Carnaval pela Recuperação e Defesa da Água, que incluiu a entrega de uma carta ao presidente Sebastián Piñera, participaram mais de seis mil pessoas, segundo os organizadores, entre os quais a ex-dirigente estudantil e pré-candidata ao parlamento pelo Partido Comunista, Camila Vallejo.

A manifestação que passou pelo centro de Santiago com cantos, danças e bandeiras coloridas, terminou sem o registro de incidentes. Na carta destinada a Piñera, as organizações da sociedade civil denunciam que a escassez hídrica que afeta as comunidades não se deve apenas à persistente seca, mas também a problemas estruturais nas políticas de exploração dos recursos naturais do país.

“Descobrimos que no Chile há água, mas que a muralha que a separa de nós se chama lucro e que é construída com o Código de Águas (de 1981), a Constituição, os acordos internacionais como o Tratado Binacional Mineiro (com Argentina), mas, fundamentalmente, com a imposição de uma cultura que vê como normal que a água que cai do céu tem donos”, diz a carta. “Esta muralha está secando nossas bacias, devastando os ciclos hídricos que sustentam nossos vales por séculos, semeando a morte em nossos territórios e deve ser derrubada agora”, acrescenta.

A luta é pela revotação do Código de Águas, ditado pela ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990), que transformou o recurso em propriedade privada, conferindo ao Estado a faculdade de conceder direitos de aproveitamento de águas de forma gratuita e perpétua a empresas. Além disso, permite comprar, vender ou arrendar esses direitos sem levar em consideração prioridades de uso, conforme denúncia das organizações.

“Há uma crise hídrica em nível nacional”, disse à IPS o indígena Rodrigo Villablanca, presidente da Comunidade Diaguita Sierra Huachacan, do norte do Chile, e porta-voz do Comitê Ecológico e Cultural Esperança de Vida. “Nossa principal demanda é a revogação do Código de Águas que está nos negando o direito de ter água para viver”, disse à IPS a ativista Teresa Nahuelpán, do Movimento pela Defesa do Mar de Mehuín, 800 quilômetros ao sul de Santiago. O Código “favorece o lucro e os que têm dinheiro”, acrescentou.

As organizações também pedem a revogação do Tratado sobre Integração e Complementação Mineira, assinado em 1997 por Chile e Argentina, que, segundo elas, entrega às empresas de mineração transnacionais toda a água e a dotação de energia que precisam para seus trabalhos na fronteira. O tratado estabelece que as partes “realizarão ações de coordenação de seus órgãos públicos competentes, de modo a facilitar aos investidores o desenvolvimento do respectivo negócio mineiro”. A carta acrescenta que “também permitirão, com esse objeto, o uso de todo tipo de recursos naturais, insumos e infraestrutura contemplados no respectivo Protocolo Adicional Específico, sem discriminação alguma”.

Villablanca ressaltou que “o tratado binacional entrega quatro mil quilômetros de Cordilheira (dos Andes) às transnacionais”. O líder comunitário assegurou que o acordo “permite que a extração dos recursos naturais seja entregue praticamente de graça às empresas e também quase gratuitamente o uso das águas”, acrescentando que “na América Latina as maiores concentrações de água doce estão na Cordilheira dos Andes”, onde habitam 80% das comunidades aborígines do Chile, que “dependem desse recurso”.

Além disso, “estas concessões mineiras e de direitos de aproveitamento de água (a privados), que além de tudo são hereditárias, estão fazendo com que as comunidades que habitam a Cordilheira retrocedam. Os indígenas estão se retirando e a pequena mineração e pecuária, que eram a subsistência das comunidades, são afetadas”, ressaltou Villablanca. “Com a Marcha quisemos gerar um impacto na opinião pública tanto do Chile quanto em nível internacional”, destacou.

Na mesma linha, Nahuelpán afirmou que “a convocação da Marcha foi um despertar das pessoas” e uma cobrança por “uma água que nos permita continuar vivendo, que nos dê vida”, e ressaltou que “as empresas florestais no sul também provocam muito dano às comunidades mapuches, pois os territórios estão secando, há muitas comunidades que não têm água e que funcionam à base de caminhões-tanque”.

À luta que já mantêm, as organizações somaram, no dia 23, uma nova preocupação devido a uma sentença do Supremo Tribunal de Justiça, que considera legal uma empresa mineira não pagar para retirar água das camadas subterrâneas no terreno sob sua concessão, pois só estariam “explorando” os minérios contidos na água. Para os ambientalistas, esta poderia ser a base legal para permitir às grandes transnacionais da mineração utilizar fontes de água sem controle, inclusive até seu esgotamento.

A sentença beneficiou a Sociedade Legal Mineira NX Uno de Peine, que foi denunciada pela Direção-Geral de Águas por não ter autorização. Mas o Tribunal explicou que os trabalhos de sondagem e bombeamento que motivaram a denúncia foram autorizados pela concessão de exploração (Artigo 53 do Código de Mineração), por isso não é necessário autorização da Direção de Águas, como indica o Artigo 58 do Código, pois não constitui uma exploração do recurso.

“Trata-se das águas que estão nas bacias e que fazem com que os vales transversais do Chile possam sobreviver”, advertiu Villablanca. “Definitivamente, estão deixando todo o Chile sem água”, concluiu. Envolverde/IPS