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No México há leis que matam manifestantes

Estudantes da escola secundária onde estudava José Luis Alberto Tehuatlie, durante o funeral do jovem, no dia 22 de julho, no povoado de San Bernardino Chalchihuapan, no Estado de Puebla. Foto: Daniela Pastrana/IPS
Estudantes da escola secundária onde estudava José Luis Alberto Tehuatlie, durante o funeral do jovem, no dia 22 de julho, no povoado de San Bernardino Chalchihuapan, no Estado de Puebla. Foto: Daniela Pastrana/IPS

 

San Bernardino Chalchihuapan, México, 1/8/2014 – Neste povoado do Estado de Puebla, no México, se conheceu da maneira ruim as consequências de protestar, agora que uma lei permite o uso de armas para dispersar concentrações públicas. Seus habitantes foram duramente reprimidos quando se manifestavam contra outra lei que, segundo afirmam, atenta contra sua autonomia.

Um estudante secundário morto, outro sem três dedos, um terceiro com a mandíbula fraturada e os dentes perdidos, um motorista que ficou sem um olho e 37 feridos por golpes e gás lacrimogêneo são a fatura que este povo nahua de 3.900 habitantes pagou por bloquear uma autopista, protestando contra uma lei estadual que tirou o manejo do registro civil das comunidades dos municípios.

“Não é justo atacarem o povo dessa forma, apenas por exigir respeito à nossa vida comunitária, nossas autoridades”, explicou à IPS o estudante do primeiro ano do curso secundário, Vianey Varela. No dia 9 de julho, quando os moradores bloquearam a autopista Puebla-Atlixco, a 150 quilômetros da Cidade do México, a polícia estadual estreou as faculdades da “lei para proteger os direitos humanos e regular o uso legítimo da força pelos elementos das instituições policiais do Estado”, que o Congresso regional aprovou em maio.

A Lei Bala, com foi batizada pelos jornalistas, permite à polícia de Puebla usar arma de fogo e outras letais contra manifestações violentas, emergências e desastres naturais. O bloqueio foi em protesto por outra lei aprovada em maio, que tirou dos presidentes auxiliares a função de juízes do registro civil e passou essas atribuições aos municípios. Como resultado, desde maio em pelo menos 190 povoados do Estado ninguém nasceu, nem morre, nem se casou. Ao menos oficialmente, porque não há registros.

“Assumi em julho e não assinei nada. O arquivo está sob nossa guarda, mas não temos selos nem papéis. E na presidência municipal tampouco sabem o que fazer, por isso ainda não há registro de nada”, explicou à IPS o presidente auxiliar de San Bernardino Chalchihuapan, Javier Montes. “Enviamos cartas a todas as autoridades. Não nos responderam. Quando acabou a tinta, o papel e os dedos de tanto teclar, fomos protestar e aconteceu isso”, contou Montes, que recebeu ameaças anônimas por protestar.

O povoado pertence ao município de Ocoyucan e seus moradores são nahuas. Segundo as ultimas estimativas da Comissão Nacional de Desenvolvimento dos Povos Indígenas (estatal), a população indígena de Puebla chega a um milhão de pessoas, um quarto da população do Estado.

Nos municípios mexicanos, além do presidente (prefeito), existem os presidentes  auxiliares, máximas autoridades nas comunidades, muitas distantes da capital municipal. Nomeiam o chefe de polícia e administram o lugar. Até maio também exerciam a função de juízes do registro civil. Como particularidade, são eleitos por um sistema direto, sem participação dos partidos políticos, e costumam ser figuras muito próximas e respeitadas entre seus vizinhos.

A ação policial para dissolver o bloqueio no dia 9 provocou a morte de José Luis Alberto Tehuatlie Tamayo, de 13 anos, que recebeu um tiro de bala de borracha na cabeça e permaneceu dez dias em morte cerebral. Inicialmente, o governo de Puebla negou o uso de balas de borracha, mas a pressão popular causada pela morte do estudante forçou o governador, Rafael Moreno Valle, a anunciar que revogará a lei.

Puebla não é o único lugar onde se pretendeu regular os protestos da população. No último ano, os parlamentos de cinco Estados discutiram iniciativas de lei semelhantes. Paradoxalmente, o primeiro foi o Distrito Federal, onde fica a Cidade do México e é governado pela esquerda desde 1997. Na capital os protestos de rua são diários, mas desde o dia em que Enrique Peña Nieto assumiu a Presidência, em 1º de dezembro de 2012, as manifestações frequentemente acabaram em violência.

O projeto de lei de manifestações públicas do Distrito Federal, promovido por legisladores do opositor Partido Ação Nacional em dezembro de 2013, não prosperou. Em abril, porém, o Estado de Quinta Roo, administrado pelo governante Partido Revolucionário Institucional (PRI), se converteu na primeira entidade a regular os protestos.

A Lei de Ordenamento Cívico desse Estado, conhecida com “lei antimanifestações”, é uma versão amenizada de outra iniciativa que pretendia que os manifestantes solicitassem autorização com 48 horas de antecedência. Mas mantém a proibição de realizar bloqueios em vias públicas e permite às forças de segurança “aplicar medidas pertinentes” contra manifestações.

Quinta Roo foi seguido pelos Estados de San Luis Potosí, Puebla e Chiapas, onde se regula o uso legítimo da força do Estado. Organizações internacionais como a Artigo 19 e a Anistia Internacional se pronunciaram energicamente contra esses ordenamentos que buscam regular as manifestações, e disseram que desde 2012 há uma preocupante tendência para a criminalização do protesto social no México.

A estatal, mas autônoma, Comissão Nacional de Direitos Humanos não fez uso de faculdades legais para promover ações de inconstitucionalidade contra as iniciativas antiprotestos civis. Pelo contrário, em outubro de 2013 recomendou ao Senado reformular o Artigo 9 da Constituição no tocante à livre manifestação pública e ao uso da força pública.

Em Puebla, não é a primeira vez que se usa balas de borracha. Horas antes de ser confirmada a morte de Tehuatlie Tamayo, o secretário de Segurança Pública em Puebla, Facundo Rosas Rosas, mostrou um documento da Secretaria da Defesa Nacional confirmando que o governo não adquiriu balas de borracha na atual administração.

Mas, em dezembro de 2011, a Comissão Estatal de Direitos Humanos criticou o então chefe da polícia de Puebla pelo uso dessas armas para desalojar moradores da comunidade de Ciénega Larga e ferir Artemia León Moreno, de 70 anos, segundo o portal Eje Central.

Em San Bernardino Chalchihuapan, as pessoas estão com muita raiva, segundo comprovou a IPS ao conversar com seus moradores. Dezenas de pessoas que participaram do funeral do estudante, no dia 22 de julho, pediam a renúncia e inclusive a morte do governador.

“Que use as balas de borracha com seus filhos”, disse um homem durante a longa procissão de testemunhos depois dos funerais do estudante, que contou com as presenças de 40 presidentes auxiliares de outras comunidades. Mas até o momento não há responsáveis nem punições pelo ocorrido. Envolverde/IPS